Gosto de ti, Alentejo

Antes cruzava o Alentejo com a mania de chico esperto. Não lhe passava grande cartão. Depois de uns quantos quilómetros percorridos e de muitas noites lá dormidas, passei a namorar com a terra. Apaixonei-me pela sua beleza que se estende até Espanha, que se espreguiça frente ao mar na Costa Vicentina, que acaricia as regiões…

Raramente conduzo a Macal durante a noite. Aproveito os dias mais longos do Verão para galgar terreno. Depois de percorrer 90 quilómetros, as minhas costas pedem-me uma noite tranquila. Sinto a coluna dorida, os ombros cansados e um formigueiro nas mãos à conta da trepidação. O farol é um cemitério de mosquitos. O motor ferve. Os elásticos que apertam os sacos que trago na mota até já ficaram folgados. 

Em plena planície alentejana, atravesso um caminho em pó entre sobreiros, azinheiras e oliveiras até me deparar com o Ecorkhotel. De design moderno, o edifício principal é revestido a cortiça e as restantes instalações estão pintadas de branco como as casas típicas do Alentejo. É um projecto arquitectónico da autoria de José Carlos Cruz. Estou a cinco minutos de Évora e a uma hora de Lisboa. Sou recebido com a elegância que compete a um quatro estrelas. Indicam-me uma das 55 suites e instalo-me principescamente. Quero aproveitar ao máximo este momento, uma vez que não durmo todos os dias em quartos tão requintados.

 

O sol ainda está para ficar. Começa a pôr-se paulatinamente. Visto uns calções, fecho os olhos e mergulho na piscina do terraço. A vista refrescante que se tem daqui, torna-me um homem feliz e pronto para ir jantar.
Vou até a um restaurante que tem um nome curioso. Janto no Moinho do Cu Torto (no Bairro da Nossa Senhora do Carmo). Aqui reina a gastronomia alentejana, tão rica na diversidade como em sabores. Se não tenho cuidado, viro uma bola. É uma cozinha de tal forma saborosa que perco o sentido da responsabilidade. Dá-me apetite e tira-me a coragem de dizer ‘já chega’. 

Neste jantar aproveito para estar com amigos que vivem nestas bandas. Como são várias bocas a comer, aproveito para provar de tudo um pouco: sopa de tomate, sopa de cação, açorda de bacalhau, pezinhos de coentrada e sei lá mais o quê. Estava tudo bom. 

Chega a hora do descanso. É importante estar de bem com o corpo e com a alma, para realizar uma viagem como esta. Não estou a testar os meus limites nem os da motorizada. Viajo para compreender o passado e o presente do meu país. Quero conhecer melhor o caminho a percorrer no futuro. 

Depois de um pequeno-almoço gourmet, cheio de tudo e mais alguma coisa, ainda tenho tempo para dar uma vista de olhos aos meus apontamentos. Estava determinado a conhecer de perto o megalitismo em Évora. São vários os monumentos desse período por aqui. Começo pelo maior da Península Ibérica e um dos mais antigos da humanidade, o Recinto Megalítico dos Almendres, conhecido popularmente por Alto das Pedras Talhas. Chegar aqui é viajar 7.000 anos. Não há depósito que chegue. É mesmo uma longa viagem até ao Neolítico. 

 

O caminho em terra sinuoso e serpenteado, leva-me a um lugar mágico. É constituído por uma centena de monólitos, alguns deles com gravuras. A sua função permite muitas teorias. O mais certo é que tenha uma relação posicional com os movimentos astronómicos elementares do sol e da lua na marcação dos equinócios e solstícios. A paisagem que se tem daqui também não é para ignorar. Perdemos de vista o horizonte que fica bem longe. Até a cidade de Évora fica na fotografia.

Falar sobre o megalitismo em Évora é dedicar uma crónica inteira a este tema, e não basta. Fica a certeza de que vale a pena conhecer os exemplos que se estendem ao longo desta região: Valada do Mato; Vale Maria do Meio; Portela de Mogos; Anta Grande do Zambujeiro; Antas do Barrocal; Anta-Capela de S. Brissos e tantos outros templos megalíticos divulgados em rotas exemplarmente preparadas para os seus visitantes.

Próxima paragem: Nossa Senhora da Graça do Divor. Vou em direcção a Arraiolos pela estrada 370 e vejo ao longe uma igreja. Estico o braço direito para indicar que vou cortar, uma vez que a Macal não tem piscas, e puxo pelo motor que não dá mais que 70 km/h. Fico perto da nascente da ribeira do Divor, que é afluente do Sorraia. Apesar de não parecer, aqui surgem várias nascentes que alimentam o Aqueduto da Água da Prata que entra pela cidade de Évora, a 12 quilómetros daqui. 

A igreja remonta a 1536, mas denuncia claras intervenções resultantes da reforma consumada na segunda metade do século XVII. Tem um pórtico de três arcos de volta perfeita, constituído por vários blocos de mármore que desenham a sua fachada. Emocionam pela delicadeza dos seu tons. Com sorte poderá visitar o seu interior, para contemplar o tecto de caixotões geométricos, com um conjunto de painéis de azulejos setecentistas, que revestem as paredes grossas deste monumento consagrado a Nossa Senhora da Graça do Divor. Não há muito mais para ver aqui, mas há muito para sentir ainda neste local sossegado.

Volto à estrada. Combinei com o Tiago Cabeça que seria pontual. Deus traçou-lhe como destino encantar-nos com o seu talento. Das suas mãos nascem as mais espectaculares figuras em terracota. Vou visitar a Aldeia da Terra que é habitada por uma miríade de esculturas criadas por este talentoso homem. Diz-me com sotaque bem vincado da região: «Sou artesão e artista plástico há 16 anos, desde os 28». 

Esta aldeia, que parece mais uma cidade (área equivalente a meio campo de futebol), é feita de casas e pessoas em miniatura. Todos os dias chega mais um habitante cozido na mufla, que está mesmo ali ao lado. Parece que estamos num filme de desenhos animados. Os carros, as caricaturas de pessoas conhecidas como Barack Obama, Cristiano Ronaldo ou Mário Soares dão vida a esta aldeia dos sonhos. É um lugar único e lúdico para pequenos e graúdos. Podemos chamar-lhe um ‘presépio’ pagão situado no sopé da vila de Arraiolos.

Consegue ver-se daqui o castelo que se situa no alto desta vila. Para chegar a ele, subo as ruas sossegadas até ao recinto amuralhado com planta quase circular, mais perecido com a forma de um ovo. No interior destas muralhas, construídas sob responsabilidade de João Simão entre 1306 e 1310, ergue-se a igreja do Salvador que beneficiou de protecção dos Duques de Bragança, senhores desta vila durante vários séculos. A paisagem envolvente que se tem a partir daqui é o mote para seguir pela estrada fora.

Destino seguinte: Estremoz. Conhecida pela suas jazidas de mármore é também recordada pelos seus talentosos artesãos. 

Cheguei, reservei um quarto modesto para duas noites, logo ali no centro da cidade. Percorri todas as ruas com a minha Macal, até chegar a uma oficina muito especial. Fui conhecer o mestre Lúcio Zagalo. Um dos poucos em Portugal a fabricar mosaicos hidráulicos de forma artesanal. Bati à porta e fui recebido com uma simpatia contagiante.

A oficina é revestida por azulejos, mais azulejos com padrões e mais padrões coloridos e amontoados nas paredes e nos armários. Num ambiente semi-sombrio, que torna o espaço mais fresco, o mestre transforma o cimento em peças de arte. O processo, que até parece simples, requer muitos anos de experiência. Diz-me com orgulho: «Comecei a trabalhar com 11 anos. Passei por Beja, Lisboa, Évora, Portalegre e Ponte de Sor. Quando fui para Lisboa perguntei que ‘caixa’ era aquela que andava no rio… Disseram-me que era o cacilheiro. Apanhei-o, e quando cheguei à capital andei de rua em rua à procura do meu próximo trabalho. Nas fábricas chegava a dormir em cima de sacos de cimento».

Estes mosaicos chamam-se hidráulicos porque são mergulhados em água durante 24 horas num tanque, em vez de serem cozidos num forno. Ficam rijos para durarem uma vida, depois de serem prensados e secos.

Basicamente, o mestre Zagalo tem à sua volta cerca de dois mil moldes metálicos, uns herdados, outros feitos à medida do cliente. Neles despeja a receita líquida de cimento e pó de pedra com um ‘copo’, uma espécie de colher cónica, para preencher os espaços dessas formas com as tintas escolhidas. 

O orgulho no seu ofício leva-o a interromper-me para me mostrar mais um mosaico: «Este é o fingido de madeira e aquele de mármore. E como é que se faz este? Hã!?», perguntou-me ele em tom maroto. De facto, esses mosaicos fingidos pareciam mesmo madeira real. E eu fiquei pasmado como um burro a olhar para um palácio. 

A fama deste mestre já chegou a grandes obras nacionais: «Já fiz mosaicos para o teatro Garcia de Resende, em Évora, para a Casa do Alentejo, em Lisboa, para a Casa da Música. Vieram aqui à oficina para eu fazer os azulejos lá para o Porto, mas eu disse-lhes que não conseguia fazer. Tanto insistiram que acabei por ceder. Até quiseram dar-me uma medalha. Era o Presidente da República que ia entregar-ma, mas eu acabei por não ir. Não tenho jeito para essas coisas. Estou bem é aqui na oficina a fazer isto. Um dia destes arrumo isto e faço um museu». 

É com esta honestidade e mestria que termino mais um dia de viagem. 
Vou para a Adega do Isaías. Já não vou lá há mais de 10 anos. Mas pelos vistos a essência mantém-se. Isso é bom.