Começo o dia na Praça da República em Portalegre. As esplanadas ainda estão vazias, uma vez que as noites são longas aqui. Este é o local de encontro dos noctívagos, que se cruzam como gatos pardos de bar em bar.
Os desdobráveis que trouxe do Posto de Turismo indicam-me a Sé Catedral, a Igreja de Santo António, a Casa-Museu José Régio, o Museu da Tapeçaria de Portalegre e tantos outros locais para visitar. Pago o café e olho para a Macal estacionada numa sombra. Está em segurança.
Meto-me a pé por uma rua com paralelos negros que parecem queimados pelo sol e avisto duas chaminés que fazem lembrar foguetões. São altas e avermelhadas. Fico intrigado e pergunto o que é aquilo a um homem que está encostado à ombreira da porta de uma taberna. «Ali?! É a fábrica de cortiça», responde-me ele. «Trabalhei lá 32 anos. Desde os 16. Empregava muita gente, até que um dia as portas não abriram mais».
Faz-se luz na minha cabeça, que já ferve de calor: tenho de tentar conhecer o interior da fábrica que deu trabalho à maioria das famílias de Portalegre entre 1840 e 2008. Chegaram a trabalhar ali cerca de dois mil operários. Um dos proprietários da fábrica, o inglês G.W. Robinson, seria responsável por muitas das alterações ao níveis industrial, mas também social, que se fizeram sentir no início do século XX. Foi pela sua mão que aqui chegaram inovações como a máquina a vapor, o gerador eléctrico, ou creches para os filhos dos operários. Ao fundar, em 1903, a sua corporação privada de bombeiros, Robinson esteve também na origem da Associação de Bombeiros de Portalegre. Pressentindo a chegada da morte, escreveu uma carta dizendo ter a certeza de «deixar este mundo em melhores circunstâncias» do que o tinha encontrado.
Com a deflagração da II Guerra Mundial, as dificuldades invadem os corredores da fábrica. Os herdeiros da casa Robinson passam a chave para as mãos de um grupo português que a geriu com base nos princípios dos seus fundadores. Porém, os anos passaram pelas máquinas e pelos edifícios, até que a chave não voltou a abrir a porta aos funcionários.
O dia começou bem. Descobri algo que desempenhou um papel muito importante na identidade local. Dirijo-me ao convento de São Francisco, contíguo à fábrica. Está transformado num museu onde se podem ver algumas das 8 mil peças sobre Cristo da colecção de Rui Sequeira. A maioria são crucifixos, para todos os gostos, de todos os feitios. Em madeira, terracota, pedra, gesso, vidro e sei lá mais o quê.
O aspecto abandonado da extenso edifício da fábrica engana. Afinal, trata-se de um projecto museológico muito interessante. Ointerior encontra-se impecavelmente limpo, visitável e com um projecto futuro que tornará esta fábrica uma referência. A proposta de reabilitação do espaço saiu das mãos do arquitecto Souto Moura.
Numa visita guiada, deparo-me com um conjunto de máquinas carregadas de história, em cada pedaço de ferrugem que as veste. Era aqui que transformavam a cortiça em produto desejado pelos quatro cantos do mundo. O sol entra sem vergonha por algumas fissuras do tecto como se fosse um holofote de cinema. O cenário é perfeito para a fotografia. A guia que conduz a visita confessa-me: «Há pessoas que querem conhecer a fábrica mas nem me querem ouvir falar. Trazem a máquina fotográfica e vêm só para isso».
Não parto para Marvão sem provar uma cacholeira branca de Portalegre. É um enchido feito com fígado e outros órgãos internos, aproveitando as gorduras macias de porco da raça alentejana. É do seu intestino que tiram o invólucro desta iguaria em forma de ferradura. O aroma e sabor são peculiares. Gostei e aconselho.
Enquanto petisco, vejo o noticiário que passa na televisão encardida pelo fumo do tabaco de outros tempos. O tema principal são os conflitos entre Israel e a Palestina. Fico com mais vontade de conhecer melhor a rota da judiaria no Alentejo.
Arranco na Macal com alguma força no punho para chegar mais depressa. Avisto o castelo de Marvão, assente sobre rochas a 843m de altitude. Deixo para trás o árido Alentejo, que dá lugar à paisagem rochosa da Beira. Paro no sopé da elevação para mergulhar nas águas do Sever. Nesta praia fluvial há esplanadas, parque de merendas e uma piscina com mosaicos azuis. Um luxo.
Depois deste momento refrescante subo até Marvão. Levo a mota por ruas estreitas com casas caiadas e moldadas ao rochedo que forma este monte. Entro no castelo e tenho uma paisagem cuja beleza não cabe numa foto. Cruzo-me com grupos de turistas brasileiros, espanhóis, americanos e de outros países que não consigo identificar. Aproveito para descer com o motor desligado até à estrada que me levará a Castelo de Vide. Assim poupo combustível e sinto com mais intensidade os aromas da vegetação que enquadra estas estradas. Há castanheiros por todo o lado.
Chego a Castelo de Vide, a terra natal de Salgueiro Maia. A Macal parece rasgar o silêncio das ruas floridas, com o seu barulho estridente que ecoa neste burgo medieval. Nem os velhinhos sentados à entrada de suas casas ficam indiferentes. Sorriem e dizem-me com um olhar fraterno ‘Bem-vindo’.
Os vestígios dos judeus nesta vila são evidentes mesmo para os mais distraídos: basta olhar para a sinalização nas ruas ou para a sinagoga. Após a expulsão de milhares de judeus de Espanha em 1492, pelos Reis Católicos, a perseguição chegou a Portugal. Muitos foram forçados a converter-se ao Cristianismo, para não serem expulsos do país – ficaram conhecidos como ‘cristãos-novos’.
Sugiro que caminhem pela judiaria e reparem em algumas gravações nas ombreiras. Se houver uma cruz na parte de fora, foi a Inquisição que a fez. Se a cruz estiver na parte de dentro, foi o cristão-novo. Antes de ir comer uma boleima (um bolo de receita judaica) vou contar os arcos em ogiva que existem aqui. São 67, o que significa que formam a maior colecção de arcos em ogiva da Europa.