Sudoeste do meu país

Desço a costa vicentina na minha Macal para explorar durante alguns dias a região de Aljezur. É neste postal de serra e mar que conheço um francês tímido e jogo à petanca nos intervalos de um almoço com os pescadores.

«Tenho ali uma coisa para o Bruno provar», diz-me o Sr. Paulo Borralho, um alentejano que se mudou para aqui. Estou no Mercado de Aljezur, no qual se encontra a sua tasca na Loja 1.

Depois de umas caracoletas com molho de manteiga, sou prendado com um prato que brilha como ouro. Cubos de moreia frita, também conhecida por ‘serpente do mar’. O seu aspecto é ameaçador: pele escura e sarapintada,  comprida e anguiliforme. Tem o tom perfeito para se esconder no seu habitat, que são as cavidades das rochas. À noite é que sai para predar. No tempo dos romanos, diziam que atiravam os escravos ao mar para elas lhes tratarem da saúde com o seu apetite carnívoro. Talvez por isso é que até os imperadores romanos eram doidos por este peixe.

Todas estas características podem enxotar os mais sensíveis, mas depois de frita, a sua pele espessa  e estaladiça torna-a um excelente acompanhamento para a cerveja que bebo enquanto aguardo pela chegada do R. (não escrevo o nome pelo facto de ele ser muito reservado). Não o conhecia. Foram os donos da casa onde me instalei aqui que me deram o contacto dele e combinámos um café.

Ele vive em Portugal. Casou com uma portuguesa e por aqui ficou.  Conta-me tudo sobre o que faz e sugere-me alguns locais para visitar. 
– Aqui vivem muitos estrangeiros. Franceses, alemães, holandeses, ingleses que vêm para surfar e depois ficam por cá. 
– Mas tu falas muito bem português, digo-lhe eu em tom já de amigo, por causa da sua simpatia e tranquilidade.  
– Sim, já dou uns toques. 
– Mas olha que nem todos os estrangeiros que vivem aqui sabem falar português. Muitos estão cá há vários anos e só falam a sua língua.
Este encontro criou raízes em mim,  como em quase todos os locais por onde passo. Viajar tem destas coisas. Fazemos amigos por causa do nosso instinto. Estamos sós e as pessoas preenchem-nos. Olhamos para elas de forma mais pura e sem preconceitos.
Chegada a hora de partida, depois de um valente abraço ao R. e ao Sr. Borralho, parto para trás. Sim, em vez de seguir para Sul estava previsto, vou num instante ao Museu da Batata Doce. Fica no Rogil, à beira da N120. De museu nada tem, mas está a abarrotar de iguarias derivadas desta batata. Uma vez que a mota anda pouco, não convém pôr-lhe mais peso que aquele que já leva. Trinco um pouco de tudo: travesseiro, pastel de bacalhau, rojões e mais umas tantas adaptações, tudo com batata doce produzida nesta região. Conquistou-me esta criatividade. Pena não haver em forma  de combustível. Estou convencido que a Macal ia gostar também.

A acompanhar esta degustação fiquei por uma aguardente que não podia deixar de ser também de batata doce. Meto uns amendoins à boca, oferecidos pelo proprietário. Ele diz-me com orgulho: «Os amendoins e a batata são produzidos por mim. São os melhores do mundo. Estas terras são excelentes». Este ‘museu’ abriu portas em 2013. Espero que nunca fechem.

Próxima paragem: Vale da Telha, que fica a não mais de 15 minutos de Aljezur. A família Portela (o meu amigo Black) emprestou-me a sua casa de férias. De facto, o serviço hoteleiro não abunda aqui. Existe uma pousada da juventude que tem dormidas entre os 11 e os 49 euros e mais um hotel aqui ou acolá. Confesso que não vejo nisso um sinal de pouco desenvolvimento.

Existem sítios que devem ser assim, com um qb de habitação, restauração e unidades hoteleiras, ou não estaria a falar-vos de uma alternativa a outros destinos de praia, onde há mais cimento que areia. Enquanto procuro a casa que me vai acolher nos próximos dias perco-me em algumas urbanizações que vão lavrando estas terras que outrora foram virgens. Pergunto-me se haverá assim tantos veraneantes para ocupar estas casas. Se houver, será uma quinzena por ano. Mas isso é com eles.

A mota é empurrada pelo vento que se faz sentir e que me leva até à minha residência. Troco as botas por uns sapatos mais leves. Arranco de mochila com as tintas, pincéis, papel e máquina fotográfica à procura de pescadores. Avisto os seus barcos. Chego e com alguma timidez de ambas as partes, consigo ‘entrar’ no universo deles. Explico-lhes o que pretendo fazer e passo a ser um convidado.  Sinto-me em casa e transformo um pescador num fotógrafo. Aliás, tem sido assim a minha viagem. Quem me fotografa são as pessoas com quem me cruzo: pescadores, agricultores, carpinteiros, polícias, turistas, gente deste mundo. Faço o enquadramento e já está.

Do mar trouxemos peixe e polvo. Acesas as brasas, mesa posta e vinho nos copos, iniciamos uma tarde dedicada ao prazer do convívio. A arte vai entrando nos intervalos de cada partida de petanca que muito se joga aqui. Este jogo praticado no sul de França foi trazido para Portugal pelos emigrantes. O nome deriva de pieds tanqués, que significa pés juntos. É nessa posição que atiro uma bola metálica para que esta fique o mais próximo da cochonette, uma bola de madeira mais pequena arremessada por outro jogador. 
A tinta do polvo que se encontra numa bolsa no interior do organismo do animal passa a ser a tinta que utilizo para retratar estes pescadores.

Em cima da mesa estão peixes assados que sabem ao Atlântico que beija as altaneiras arribas, em tom negro, onde acaba a terra. No vinho bebem-se palavras sobre o mar e a vida de cada um. Confundem-se. O oceano é um prolongamento da sua existência.  «Pesco desde menino. O mar está diferente. Há menos polvo. Há menos perceve. Já fui contrabandista. Não sei o que levava no barco. Sei que levava o sustento da minha família», diz-me um deles com sorrisos de quem não teme.

Está na hora de partir. O sol avisou que só voltava no dia seguinte mais ou menos à mesma hora. Pedi à Macal para me levar ao sítio mais  bonito. Chego à Arrifana e fico especado em frente à enseada com forma de concha. O areal é estreito e para chegar a ele a descida é íngreme. Os surfistas vestem os fatos junto aos seus ‘pães de forma’ aqui estacionados. Vão surfar as últimas ondas do dia. Pergunto-lhes se vivem nesta praia e respondem-me: «Sorry, I don’t speak portuguese. But yes, I live here». Acabo de perceber o que o meu amigo R. me tinha dito. Saco a minha máquina fotográfica e tiro o máximo de fotos ao som de ‘Almadraba’ dos The First Breath After Coma, que serão o tema da próxima crónica.