‘Durante cinco anos, vivi num saco-cama’

O pai era investigador criminal e foi com a mesma câmara com que fotografava cenas criminais que Kelly Reichardt começou a apaixonar-se pela arte das imagens. Aos 47 anos, está no auge da carreira com Night Moves, cuja ante-estreia portuguesa ocorreu no festival Curtas Vila do Conde, onde conversou com o SOL. Na entrevista, a…

Como começou a fazer filmes?

Fui para Boston aos 18 anos. Cresci no ambiente culturalmente vazio de Miami, rodeado por polícias, que era a profissão do meu pai, e só queria sair da Flórida. Queria fazer filmes, mas não tinha a mínima ideia como. Por mero acaso, na minha primeira noite em Boston, uns estudantes de Artes foram à casa onde ia ficar, porque estavam a usar o frigorífico da pessoa que me acolheu. Convidaram-me para jantar e fiquei a saber que queriam fazer um projecto em filme, mas nenhum deles sabia filmar.

Nasceu assim o seu primeiro projecto?

Sim. No final dessa noite, por pura loucura, ficou acordado que iria dormir no sofá de um deles até acabar o projecto e que iria para a escola de Belas Artes, durante a noite. Acabei por usar muitos desses filmes para entrar na Faculdade. Mais tarde, comecei a fazer videoclips. Depois fui para Nova Iorque e trabalhei em longas-metragens independentes, de Hal Hartley ou Todd Haynes. Fiquei com vontade de fazer uma longa-metragem, voltei à Flórida e escrevi o guião de River of Grass, que apresentei em 1994.

Entre essa sua primeira 'longa' e a segunda (Old Joy, em 2006) passaram 12 anos. Tinha o objectivo de voltar a filmar?

Sim. Fui para Los Angeles, onde a Jodie Foster iria produzir um guião que tinha escrito, mas nada aconteceu, apenas um monte de reuniões. Durante cinco anos não tive casa própria, vivi num saco-cama, entre Nova Iorque e Los Angeles. Tentei fazer um segundo filme até ficar esgotada e esgotar todos os meus amigos, que queriam matar-me, porque não saía dos sofás deles. Comecei a dar aulas na School of Visual Arts e voltei aos pequenos formatos. Não pensei que iria ter nova oportunidade de uma 'longa', porque não havia muitas mulheres a fazer filmes.

Mas nunca desistiu…

Fui juntando dinheiro até poder fazer um filme, pela experiência e aprendizagem. Fiz pequenos projectos em Super 8 e Old Joy iria ser igual, só que em 16 milímetros. Foram duas semanas de rodagem com dois actores, usando apenas luz natural, com uma equipa de seis pessoas. Não imaginava que o filme iria ganhar vida própria, o que me permitiu depois fazer Wendy and Lucy (2008).

O seu percurso representa a vida de um cineasta independente? Quando vemos cinema americano no grande ecrã, pensamos sempre em orçamentos milionários…

Fazer trabalho não comercial é uma luta muito grande. Tenho sorte de poder sobreviver com o ensino [Reichardt é professora no Bard College, no estado de Nova Iorque] e de ter uma vida muito espartana. Não tenho filhos, só o meu cão. Tenho a felicidade de ter uma excelente equipa, que volta sempre para fazer os meus filmes. É uma aventura e um milagre, as recompensas não são financeiras.

Considera-se uma realizadora minimalista, focada nos pequenos acontecimentos do dia-a-dia?

Estou confortável com essa ideia das pequenas coisas, gosto de mostrar como são feitas: mudar a roda de um carro, cozer pão, construir uma bomba [risos]. Não estou interessada no que é espectacular, mas sim em contar histórias do ponto de vista de quem não costuma estar no centro das atenções.

E considera-se feminista?

Claro, que mais poderia ser? Seria como estar nos Estados Unidos, ser negro e não ver as coisas através do ponto de vista dessa minoria. Lembro-me de estar na minha primeira sala de aula e ficar furiosa ao ver que não havia mulheres entre as caras dos Presidentes ou nas notas de dólar.

Em Night Moves, trabalha com Jesse Eisenberg e Dakota Fanning, que são duas das maiores promessas do cinema americano. Como foi possível reuni-los num filme de baixo orçamento?

Tive a sorte de gostarem do guião. Muitos actores procuram experiências e nós não podemos oferecer luxos, a equipa trabalha toda em conjunto. Não há uma rede de segurança: se fizermos asneiras, estamos lixados, o que por vezes espelha as situações de que trata o filme. Alguns actores odeiam e outros choram quando acabam a rodagem, porque é uma experiência que lhes muda a vida. Não temos ecrãs verdes e efeitos, há muita fisicalidade… Os meus filmes giram em torno da prestação dos actores e isso é atractivo para eles.

Night Moves aborda a história de um grupo de ambientalistas que decide fazer explodir uma barragem. Estava interessada na temática ambientalista ou apenas na interacção das personagens?

Não queria fazer um filme-mensagem, estava interessada nas personagens, que por sua vez são guiadas por motivos políticos. A personagem do Jesse é um fundamentalista, uma figura 100 por cento certa da sua ideologia e intuição. Podia ser de extrema-direita ou esquerda, isso não interessava. 

Ficou surpreendida com as reacções ao filme?

Quais? Não sei se foram positivas ou não…

O filme foi seleccionado para os festivais de Veneza e Toronto, é um belo cartão de visita.

Ah, estava a falar disso… Tive boas reacções, mas também surgem sempre raparigas de 20 anos desapontadas por não ter mostrado os ambientalistas como pessoas puramente boas. Espero que não haja só um tipo de reacções.

Se fizermos uma pequena pesquisa na internet, é fácil encontrar artigos em que a consideram uma das vozes mais fortes do cinema independente actual e uma realizadora em ascensão… E se um dia chegar um convite de um grande estúdio?

Em ascensão? Tenho quase 50 anos! [risos] Isso sai fora do contexto do meu dia-a-dia. Fala de um estúdio de cinema como se fosse uma pessoa, que me vai procurar e bater à porta. Não penso que os directores dos grandes estúdios vejam os meus filmes e pensem 'temos de a ir buscar, vamos fazer muito dinheiro com ela'.