Quando a SIC arrancou, Emídio Rangel lançou-lhe o desafio de vir para Lisboa integrar os quadros de uma aventura que estava prestes a começar. “Foi um momento único”, recorda José Alberto Carvalho. “O que ele já tinha feito na TSF e depois veio a fazer na SIC fez, de facto, escola e moldou o jornalismo. O que conhecemos hoje do jornalismo audiovisual deve muito ao que o Emídio Rangel fez”.
José Alberto recorda dias cheios de surpresas em que “havia sempre uma maneira nova e inconformista de abordar um tema ou uma situação. Ele forçava os limites do conhecido, do conformismo, das águas paradas. Era muito gratificante trabalhar com ele”.
A cobertura de umas eleições europeias em que se esperava que a abstenção fosse brutal – calhava a um feriado já em época balnear – foi gerida com um golpe de imaginação: “O Emídio lembrou-se de começar a emissão com as imagens em directo recolhidas de um helicóptero onde eu ia, das praias cheias de gente da Costa da Caparica. E depois era preciso acabar em grande, com o helicóptero a chegar aos estúdios de Carnaxide. Só que havia o problema de a SIC não ter heliporto. Um contratempo menor para o Emídio que se lembrou de mandar arrancar três ou quatro candeeiros para este poder pousar”.
Um episódio, entre tantos, como a ideia de fazer a cobertura do arranque da Expo 98 a partir de um barco no Tejo, faz José Alberto Carvalho defender a ideia de que Rangel “era dono de uma loucura saudável, que deixou marcas em tudo o que fez e que contagiou os outros”.
Nos últimos anos, no entanto, depois do despedimento da SIC e de uma breve passagem como director-geral da RTP, a sorte de Emídio Rangel mudou levando-o a desaparecer do panorama audiovisual português. “Por duas ordens de razões: primeiro pelo seu feitio especial e pela sua forma indomável e permanentemente insatisfeita de estar na vida e na profissão. Depois, pela mesquinhez do país, que perdeu, com esse abandono, um grande profissional”.
“Um romântico apaixonado pelo jornalismo, mas pragmático”, é como o define José Alberto Carvalho, referindo que a sua “ânsia de viver e lutar pelas causas às vezes causavam rejeição e incomodavam as pessoas. E isso abateu-se sobre ele mais do que uma vez”.
O jornalista José Mário Costa – criador do Ciberdúvidas, actualmente a dar formação na RTP, e que foi seu colega em Sá da Bandeira, onde Rangel nasceu em 1947 -, lamenta a queda em desgraça do homem que mudou o rosto da informação em Portugal: “Das minhas relações, amigos e conhecidos, não conheço ninguém a quem a vida tenha destratado tanto e tenha sido tão madrasta, a começar pela vida profissional”.
Um paradoxo para um homem que, diz, “fica na história do audiovisual português em dois períodos: primeiro pela sua acção em Angola em que, antes do 25 de Abril fez da Rádio Comercial de Angola um projecto vanguardista em todo o mundo português. Foi a rádio que começou com os directos. O Jorge Perestrelo comentou em directo os Jogos de Munique, por exemplo”.
Dos tempos de Sá da Bandeira (actual Lubango) – “que era a Coimbra de Angola” – José Mário recorda que Emídio Rangel já era carismático. “Era um líder estudantil e quando o ministro Adriano Moreira foi lá, foi ele quem liderou as manifestações contra o regime e contra a guerra”.
No 25 de Abril encontrava-se em Lisboa “e fez uma reportagem que foi censurada em Angola”.
No seu regresso a Portugal, em 1975, as suas capacidades facilmente se tornaram reconhecidas: “Fez concurso para a RDP e ficou em segundo lugar. E ganhou prémios Gazeta, e o prémio Rei de Espanha, com grandes trabalhos de rádio”.
Mas o que marcou a vida de Emídio Rangel, foi a criação de dois projectos de media que mudaram a maneira como o país vê e ouve notícias. “Foi um lutador, tudo o que conseguiu foi à base de uma perseverança e persistência que nunca conheci em mais ninguém”.
Mas os últimos anos “vive-os com uma grande amargura. Claro que terá pago por algumas posições mais exacerbadas de combate, mas não se justifica que pessoas que não valem um centésimo do que ele vale como jornalista estejam aí, ao mesmo tempo que ele foi abandonado”.
José Mário Costa lamenta sobretudo que as casas que “criou”, o tenham esquecido: “A TSF fez 25 anos e não falaram nele, a SIC fez 22 anos e não passaram imagens dele. O papel dele, neste últimos anos foi completamente rasurado”.
“Houve gente que não lhe perdoou certo tipo de confrontos. E depois o país é o que é. Ele deu emprego a muita gente, mas as pessoas são ingratas”. O que fica por fazer com a morte de Emídio Rangel, diz José Mário Costa, é “o livro das memórias dele em que alguns amigos estavam a trabalhar. Continuava a ter memória prodigiosa, estando debilitado”.
Paulo Magalhães, editor do programa Política Mesmo, da TVI24, recorda Rangel como o autor de “uma revolução nos media”. Finalista de Comunicação Social, fez parte da leva de “miúdos que fizeram formação na TSF e que hoje são jornalistas em muitos órgãos de informação e, até por isso, o seu legado continua”.
Segundo Magalhães, há “uma era antes e uma depois de Rangel”. E justifica: “Criou uma maneira mais humana de fazer jornalismo. Pôs-nos a escrever como se fala, porque na época havia um estilo muito pomposo de fazer jornalismo, feito de clichés. Tudo isso mudou com ele. Levou o jornalismo para a rua. Antes disso, fazia-se tudo dentro da redacção. Não é por acaso que ainda hoje as pessoas ligam muito para a TSF”.
“Era a alma da TSF, um tipo cheio de garra, que passou para nós, uns miúdos, imensa responsabilidade” . Um chefe “duro às vezes, mas sempre justo, que fazia reuniões onde avaliava constantemente o que tinha corrido bem e o que tínhamos feito mal. Mas era também muito divertido, muito inspirador”.
Naquela altura, na Torre 2 das Amoreiras, diz Paulo Magalhães, Emídio Rangel modernizou tudo. Até a música. Antes dos blocos de notícias, passava a rubrica A Memória da Música, com temas clássicos: “Eram coisas que não se ouvia em lado nenhum”. A TSF, conta o jornalista da TVI, “investiu em muitos nichos, porque havia uma capacidade visionária no Rangel”. Esta revolução, diz, “foi feita aproveitando o sangue na guelra dos jornalistas principiantes. Nós éramos esponjas a ouvi-lo porque mesmo sendo um visionário era também muito pragmático”.
João Paulo Baltasar, que também frequentou o primeiro curso de formação de jornalistas da TSF, em 1987 (coordenado por Adelino Gomes) acaba agora por estar em processo de despedimento da rádio onde trabalha há 26 anos. É um dos anunciados 150 despedimentos da holding Controlinveste.
Recorda que “nesta fase complicada”, entre as muitas mensagens de apoio, uma foi especial: a de Emídio Rangel, que a escreveu já bastante debilitado. “Foi muito reconfortante para mim, deu-me ânimo e foi mais uma prova de uma característica que muito admirava nele: a da lealdade. 26 anos depois do início da TSF reafirmou-me a confiança em mim”.
E, acrescenta João Paulo Baltasar: “Não sendo nós amigos íntimos. Sou apenas uma das muitas dezenas de pessoas que ajudou a crescer”.
João Paulo recorda do homem que conheceu aos 19 anos “teria ele 39”, a “determinação e, ligado a isso, a coragem, e a grande capacidade sonhadora. Era um homem para quem os limites eram desafios e não problemas. E recordo uma coisa muito importante, é que ele era um homem livre, assumia as convicções de uma forma corajosa e frontal e isso era também um grande exemplo”.
Uma postura de vida que inspirava o jovem jornalista que admirava no director da rádio que arrancou a 29 de Fevereiro de 1988 “a grande capacidade de liderança”. “Ele era um líder, o que é diferente de um chefe. Ele sabia motivar e entusiasmar. Tinha convicções fortes mas estava disponível para integrar as ideias dos outros”.
“Trabalhei com muita gente e nunca conheci ninguém tão galvanizador e motivador e ao mesmo tempo sensível às questões das pessoas. Toda a gente com quem trabalhou fala bem dele”, resume José Mário Costa.