Conversei com ela uma única vez há cinco anos, lembro-me de termos falado da sua passagem por Lisboa quando foi homenageada no Festróia. Nessa sua passagem por Portugal a impressão que deixou não foi a melhor devido a alguns caprichos de estrela, mas pelo que recordou com todos os pormenores – da comida aos monumentos – Lauren Bacall ainda guardava uma memória prodigiosa muito para lá dos 80. Mais surpreendido fiquei quando lhe passei uma foto a preto e branco que transbordava charme. Era a imagem que, em 1943, promoveu a sua estreia no cinema, era ela uma jovem com menos de vinte anos. Tinha um olhar arrasador nessa pose encenada da velha Hollywood. Passaram mais de 60 anos desde que foi tirada a fotografia em que eu lhe pedia um autógrafo. Mais uma vez a memória guardava todos os pormenores.
– «Sabe que me recordo de tirar esta foto como se o tivesse feito esta tarde?». – Incrível memória, disse eu, espantado.
– «Foi um domingo à tarde em casa do Howard Hawks. Lembro-me de todos os pormenores por causa do vestido que uso nessa imagem. Ele convidou-me para lá passar e eu estreei esse vestido. Passei quase todo o dia por lá… Ele queria falar-me da possibilidade de eu entrar num filme, o Ter ou Não Ter. Quando lá cheguei tinha um fotógrafo à espera, pediu-me para fazer umas fotos que depois iria mostrar aos estúdios. Não me esqueceu mais. É engraçado você ter trazido esta imagem».
Lauren Bacall mantinha, e manteve até morrer, aquele olhar verde vivo. Chamavam-lhe ‘The Look’, e a imagem explica porquê. Terá sido a mulher de Howard Hawks que um dia reparou na jovem Betty Joan Perske que ilustrava a capa da revista Harper’s Bazaar de Março de 1943. A dona deste olhar ainda não tinha completado 19 anos, era manequim, tinha passado pela Broadway sem grande sucesso e estudava bailado e representação.
Já que a memória era rica, pedi-lhe os pormenores desse tempo:
– «Não levei muito a sério quando me pediram para tirar umas fotos para o cinema. Sonhava ser actriz, mas de palco, sinceramente nunca pensei nesse mundo dos filmes. A única coisa em que pensava no cinema era na Bette Davies, aliás eu faltava às aulas para ver os filmes dela… (risos) Para lá disso só pensava no palco e em estar num palco. Queria ver o meu nome com luzes no cartaz de uma peça, ficar ali em pose de fotografia. (risos) Sabe?! Nessa altura, nessa idade, tinha a minha imaginação fora de controlo».
Hawks tinha aceite a recomendação da mulher e contratou-a. Moldou a sua sensualidade que arrasava em pouco tempo o coração do homem a quem ela ensinaria a assobiar no ecrã, o duro Humphrey Bogart. O realizador ensinou-a também a tirar partido daquela voz grave. Ele diria mais tarde que lhe moldou a imagem e a personalidade de actriz para ser dura e má com os homens. A sua beleza tudo perdoava, a sua sensualidade cegava até uma certa revolta machista. Por vezes insolente para a época, Lauren Bacall foi talvez uma das mais belas figuras que o cinema alguma vez criou.
Havia sempre nela um jogo de sedução, gerido com mestria – especialmente a contracenar com Bogart. Imagens eternas, aquela cena do assobio ou o toque do cigarro em Ter ou Não Ter (1944), e os diálogos atrevidos em The Big Sleep (1946).
Gerindo essa química o casal Bogart/Bacall cruzar-se-ia ainda em Dark Passage (1947) e Key Largo (1948). Não muito depois a actriz viria a optar por se dedicar à vida familiar e ao crescimento dos filhos, não sem antes ter protagonizado litígios vários com os estúdios da Warner onde foi suspensa 12 vezes por recusar papéis.
Senhora do seu nariz, diz-se que era minuciosa na preparação das personagens e cuidadosa nas escolhas. Tal como me referiu na única vez que conversámos, um filme começa por ser essencialmente uma boa história.
– «Contar uma historia é que é o principal na intenção de fazer um filme. Deve ser isso o princípio de um filme. Repare que, se contar uma boa história, consegue captar a atenção da audiência, todos ficam com vontade de perceber o que se passa a seguir… Um público que ganha familiaridade com a personagem e com o seu carácter… Só assim se consegue tocar e envolver uma plateia. Isso sempre foi assim. E tudo parte do argumento».
Quando lhe perguntei porque é que ainda continuava a trabalhar e à procura de boas histórias, personagens que se enquadrassem bem com a sua idade e a sua personalidade, Lauren Bacall teve resposta pronta sem hesitar:
– «Toda a vida quis ser actriz, primeiro de teatro, mas sempre preocupada em fazer um bom trabalho. Olho para trás e passei 20 anos da minha carreira no palco, a fazer teatro. Ainda agora posso dizer que adoro trabalhar, foi isso que sempre me manteve activa e entusiasmada todos estes anos. Sempre achei que não deveria parar. Quero continuar, mas a fazer coisas interessantes. Se adoramos o nosso trabalho, as coisas boas vêem ter connosco. Se não gostamos do trabalho, não devemos continuar, devemos desistir e desaparecer. E eu não tenho intenções de desaparecer».
Aos 89 anos, não resistiu ao coração e teve mesmo que desaparecer. Ganhou a eternidade ao lado de Bogart de quem dizia ter sido o amor da sua vida, o seu mentor, um professor de vida.
Depois da morte de Humphrey Bogart em 1957, Lauren Bacall foi casada com o actor Jason Robards, entre 1961 e 1969, e foi ainda conhecida uma paixão mais breve com Frank Sinatra. Participou em mais de 50 filmes e no cinema jamais apareceu um olhar assim.