Foi um fim em glória. Após 44 anos ao serviço, no passado dia 14 de Agosto a corveta regressou ao porto, não para ficar a salvo mas para terminar os seus dias. Não voltará ao mar. O vice-almirante Pereira da Cunha, presente a bordo do navio para uma última missão, esta de homenagem, confirmou o destino: “Vai ser o abate puro e duro” . O processo começa com a retirada de equipamento que pode ainda servir como suplente para outros navios, para o casco ser depois vendido em hasta pública, a um valor que não deverá ultrapassar uns milhares de euros. “A não ser que haja um mecenas que se interesse por lhe dar outro destino”, comenta Pereira da Cunha. Uma hipótese seria transformar a velha corveta cheia de histórias num museu ou “dar-lhe um destino subaquático”, como já aconteceu a outros vasos da Marinha que foram afundados ao largo de Portimão para formação de recifes.
Construída nos estaleiros Blohm & Voss em 1969, e o primeiro de uma série de seis navios desta classe, a João Coutinho entrou ao serviço da Armada Portuguesa a 7 de Março de 1970. Dirigiu-se para Moçambique, permanecendo a navegar no Índico até 1975. Foi o navio português que mais tempo esteve a prestar serviço nas antigas colónias portuguesas.
11 comandantes a bordo
Após mais de quatro décadas no activo, a Marinha estima que seja a corveta 'mais antiga' do mundo. “Mas agora há uma questão de racionalidade. A Marinha não tem recursos para manter a navegar estes navios já em fim de vida”, explica o vice-almirante. É como nos carros: a partir de certa altura a fadiga dos materiais começa a notar-se.
“Tenho uma guarnição excelente que lutava diariamente para ter o navio sempre em óptimas condições”, elogia Santos Serafim. “Esteve sempre em condições de segurança e prontidão para as várias missões”, diz o comandante que, na ponte, dirige a navegação da NRP João Coutinho ao longo do Tejo, de Cascais até Almada (NRP é a sigla internacional para Navio da República Portuguesa). Na ponte, vários oficiais e marinheiros garantem a segurança da navegação em águas restritas, ou seja, em aproximação de terra. Além do comandante, estão presentes o navegador, o homem do radar, o marinheiro telegrafista, o marinheiro do leme, o sargento que faz a navegação e mais dois homens que tiram azimutes nas asas da ponte. No último dia de vida útil, também passaram uma vez mais pelo “cérebro do navio” 11 dos 23 comandantes da história da João Coutinho.
Sérgio Zilhão foi o segundo comandante da João Coutinho, tendo estado ao largo de Moçambique de 1970 a 1972. Nas patrulhas da costa, com a missão de vigilância e soberania portuguesa nas águas “muito dadas a temporais e tufões” do Índico, fez tantas milhas que “dariam três voltas e meia ao mundo”, recorda. “Com o bloqueio inglês, por causa da independência da Rodésia, tínhamos também como missão defender os navios que iam entrar na Beira”. Eram missões sobretudo de cariz diplomático, uma vez que a corveta não estava envolvida em operações de guerra. Zilhão recorda também a especial competência “deste navio muito bom” para as condições agrestes de África: “Versátil ao máximo, grande manobrabilidade, baixo consumo”. O navio tinha tudo e até um extra: “Foi o primeiro navio com ar condicionado em todo o lado. A temperatura estava sempre entre 22 e 24 graus e a humidade a 60%”. Um luxo justificado não para manter a guarnição contente mas porque o navio não tem vigias, é um bloco. “Sem ar condicionado sufocava-se”.
De cada vez que, nos últimos tempos, a João Coutinho mudou de comandante (as comissões são de apenas dois anos) Sérgio Zilhão apresentou-se para a festa do navio. Recorda o tempo da missão anterior, no lago Niassa – onde por seis vezes viu a lancha que comandava atacada por fogo de artilharia – e a missão com a corveta João Coutinho como os melhores anos de uma vida que adorou. Por isso não é de estranhar que a ideia, se calhar utópica, de ver o navio transformado em museu lhe agrade.
A estátua de Cabrilho
Mário Alvarenga Rua, comandante da João Coutinho de 1987 a 1989, lembra a missão patriótica de ter levado a San Diego, nos Estados Unidos, a estátua do navegador português João Rodrigues Cabrilho, que, ao serviço de Castela, ficou conhecido por ter sido o primeiro europeu a desembarcar no território que é hoje a Califórnia. “A estátua estava partida e a nossa missão era levar o exemplar feito em Vila Viçosa”. Na verdade, recorda Mário Alvarenga Rua, “a principal missão era 'to show the flag'“ à comunidade de portugueses radicados em San Diego, “habituados a ter periodicamente a Sagres – ou outro navio de guerra – ancorada na Baía”. Recorda que os emigrantes portugueses em San Diego são “extremamente orgulhosos das suas origens. Explodem de patriotismo quando vêem a bandeira portuguesa”.
Foi a primeira vez que, sozinha, uma corveta da Marinha portuguesa atravessou um oceano. “Para um navio destes é complicado estar a quatro dias de distância do porto mais próximo”. Não obstante os três meses de preparação em terra, já em alto mar o comandante verificou uma avaria no vaporizador, o que significava que não havia condições de produzir água doce com a água recolhida do mar. “Levávamos apenas 80 toneladas de água para 100 pessoas em oito dias de mar. Foi uma viagem difícil e uma aventura fantástica”. Mas ironiza: “Ia muito confiado no navegante que levava embarcado”, e aponta para o local no convés, onde há 26 anos seguia embrulhada a efígie do navegador do século XVI, cuja nacionalidade os espanhóis disputam “sem grande sucesso”, diz o comandante que atravessou o canal do Panamá, em direcção ao Pacífico, até à cidade berço da Califórnia.
Em San Diego, a cerimónia de inauguração do novo Cabrilho contou com a presença do embaixador português nos Estados Unidos e com o Chefe de Estado das Forças Armadas.
Missão mais ingrata de recordar foi a de recolha “dos despojos humanos” do acidente com um charter italiano em Santa Maria, nos Açores, em 1989, em que ninguém se salvou. “O navio estava em Ponta Delgada e fomos chamados a cumprir essa missão. Era um cenário dantesco, não estávamos preparados para aquele drama, mas tínhamos que cumprir a missão”. Até porque a tarefa que mais alegra as várias guarnições “é a de salvar vidas”. “Aqui basta salvar uma vida para valer a pena”, resume Alvarenga Ruas que, pragmático, sustenta que não necessita de um museu para homenagear a vida longa da corveta e das suas guarnições. “A alma do navio está nos nossos corações. E para mim está também no livro que escrevi Sou eu e o Mar e no relatório da viagem a San Diego, que guardei. É uma emoção muito grande recordar tudo isto, porque a minha missão mais importante como oficial da Marinha foi neste navio”. Alvarenga Ruas seria ainda adido naval em Paris e na Holanda, onde observou de perto a reestruturação da marinha francesa e da holandesa, recolhendo experiência para a reorganização da Marinha nacional, que acompanhou na área de Planeamento do Estado Maior da Armada.
Da Expo para a Guiné-Bissau
No dia 10 de Junho de 1998, comandada por Joaquim Louro Alves, a João Coutinho encontrava-se no desfile na Expo 98, a propósito do Dia de Portugal. A 11 de Junho dirigia-se à Guiné-Bissau para participar, com mais três navios, na Operação Crocodilo, de retirada de cidadãos nacionais e de países amigos daquele estado que tinha entrado em guerra. “Foi relativamente complicado. Viemos reabastecer aqui à base e seguimos”, conta Louro Alves.
Já na Guiné, no meio de explosões e projécteis, tiveram de recolher “pessoas a bordo, onde era feita a identificação e a triagem dos feridos”. Após embarcar o máximo de passageiros, o navio dirigiu-se para Cabo Verde, onde largou os refugiados para voltar à Guiné em nova recolha de cidadãos nacionais. “Só a João Coutinho retirou à volta de 400 pessoas. Foi uma missão diferente de tudo, muito humana. Estávamos muito próximos daquela gente”.
Coincidências da vida, Louro Alves encontrou no adeus da João Coutinho, também encostada à doca no Alfeite, pronta para abate, a lancha de desembarque que comandou de 1998 a 2000. “Há 15 dias estive aqui para a despedida”, comenta o oficial há dois anos na reserva.
Com a missão genérica de vigilância das águas sob jurisdição nacional e participação no dispositivo do serviço de busca e salvamento marítimo, foram muito diferentes as tarefas que couberam à João Coutinho e às suas guarnições de 70 homens.
A missão ecológica
A Valentim Antunes Rodrigues calhou, em 2002, uma missão que, tivesse corrido mal, seria lamentada por muitos anos. Conseguiu em conversa por UHF com o comandante do Prestige, convencê-lo a afastar-se da costa portuguesa. “O navio já vinha de França, apresentando risco de se partir e ninguém queria aceitá-lo. Era muito importante que não se aproximasse de terra, porque representava uma catástrofe enorme para toda a economia do litoral português”. O petroleiro com 77 mil toneladas de combustível viria a partir-se ao largo da Galiza provocando uma maré negra que se estendeu por 250 km de costa.
Na chegada ao Alfeite, Antunes Rodrigues interrompe a conversa enquanto todos os navios atracados fazem o chamado 'apito de sereia', acolhendo o João Coutinho na sua última morada, e um helicóptero sobrevoa a área simulando um adeus. Uma perceptível emoção toma conta dos comandantes. Antunes Rodrigues comenta, abandonando o discurso pragmático: “São 44 anos ao serviço da Marinha a fazer um trabalho solitário que ninguém vê”. E resume: “O mar dá-nos respeito e contemplação. Está muito ligado à nossa História. É impossível um português afastar-se do mar, porque o mar sempre foi a liberdade”.