Ultrapassou-se, então, um tal grau de demência e manipulação das massas pela propaganda que dificilmente se imaginaria o risco da sua repetição ou amplificação no futuro. Não, isso nunca mais seria possível depois de a humanidade ter sido confrontada com tais horrores e supostamente aprendido com a sua lição.
Esse optimismo histórico mostrou-se infundado. Aliás, todas as tentativas de interpretação – por mais profundas que tenham sido – dos fenómenos totalitários ou dos fanatismos mais extremistas chocaram sempre com um obstáculo decisivo: a impossibilidade de racionali zar a irracionalidade.
Os mais bem documentados enquadramentos históricos, sociológicos, políticos e religiosos de explicação desses fenómenos contribuíram, sem dúvida, para os situarmos nas circunstâncias específicas de cada época, mas nunca foram suficientes para torná-los racionalmente compreensíveis. As expressões de demência colectiva escapam ao foro das interpretações psiquiátricas, por muito subtis que estas sejam.
O chamado Estado Islâmico (EI) – que praticamente ninguém, incluindo, como vai sendo habitual, os serviços secretos melhor informados, detectou a irrupção e o vertiginoso alastramento – é talvez o principal enigma contemporâneo de demência fanática e totalitária que escapa à racionalidade.
Pode compreender-se o caldo de cultura em que foi gerado: a devastadora crise civilizacional do mundo árabe e muçulmano, a calamitosa intervenção militar da administração Bush e seus aliados no Iraque depois do 11 de Setembro, o caos que se seguiu às ‘primaveras árabes’ ou ainda a humilhação histórica do povo palestiniano pela colonização israelita (de que assistimos hoje a mais um tenebroso episódio, embora acicatado pelo extremismo do Hamas).
A desintegração das fronteiras entre a Síria, devastada pela guerra civil, e o Iraque, sem esquecer o sectarismo cego do anterior Governo xiita de Bagdade, que foi perdendo o controlo das suas forças e abandonando o terreno (e o armamento) ao EI, proporcionaram também, é certo, o avanço imparável dos invasores, aos quais se aliaram forças do antigo regime de Saddam Hussein.
Mas, mesmo tendo tudo isso em conta, é muito mais difícil de racionalizar o aparecimento fulgurante do EI, a sua progressão quase imparável até Bagdade, as suas origens (é uma dissidência da Al-Qaeda) e, muito especialmente, a sua mistura explosiva de ódio anti-ocidental e intermuçulmano.
O EI representa o sunismo mais extremista (mais demencial, para sermos mais precisos) que se opõe visceralmente não só aos xiitas mas também aos sunitas ditos ‘moderados’ ou ortodoxos, perseguindo o objectivo imediato de instalação de um califado nas áreas conquistadas da Síria e do Iraque. E pretende ainda converter à força ou eliminar da forma mais expedita todos os que encontra pelo caminho, sejam cristãos, curdos ou yazidis, essa minoria étnica de raízes religiosas mistas da qual nunca ouvíramos falar.
Os yazidis tornaram-se os protagonistas centrais de um êxodo de proporções bíblicas através das montanhas desérticas para escaparem à fúria sanguinária do EI. Foi isso que forçou os EUA e outros países como a França e a Grã-Bretanha a lançarem uma campanha humanitária de apoio aos fugitivos e a combaterem o avanço dos loucos iluminados de Alá. Os curdos, último bastião de resistência regional, acabaram por receber o apoio militar de que careciam para enfrentar o EI.
Ao novo envolvimento militar dos Estados Unidos, o EI respondeu com uma imagem de intimidação e puro horror: a de um jornalista americano antes de ser degolado por um fanático islamita. Imagem que deveria repetir-se com um outro jornalista raptado se a mensagem não fosse bem recebida em Washington.
Talvez seja esse, porém, o erro fatal da propaganda dos fanáticos. Tal como nós não os entendemos também eles não nos entendem. E é isso que torna tão perturbantes as notícias de que jovens europeus em deriva se têm inscrito como militantes do EI, vulneráveis à irracionalidade monstruosa da sua propaganda, perante o vazio de causas em que os mergulhou a actual crise de referências da nossa civilização. É um vazio que deveria inquietar-nos quando se trata de combater a atracção do horror.