O herege Luís Freitas Lobo

Ouvi dizer de Luís Freitas Lobo. Que não entende de futebol, que não comenta o que as pessoas não vêem mas apenas o que é evidente, isto e aquilo. A regra geral é implacável e pouco existe que possa ser feito, somos estes, aqui e na generalidade dos lugares que conheço, não somos outros. A…

Não o conheço, troquei uma mensagem de apreço, mais nada. Não o vejo como um comentador de futebol, o jogo nele é uma metáfora da vida – “dedico o comentário aos que colocam o futebol acima de todas as coisas”, não se cansou de dizer durante o mundial do Brasil. Criticam-no também por isso, por dizer coisas absolutas que o condenariam à fogueira da Inquisição, que o condenam à fogueira dos intolerantes de sempre, de todos os que lidam mal com a ironia, com as metáforas e figuras de estilo. Porque quando Luís Freitas Lobo fala de futebol está a falar de amor e de morte, da memória e da esperança, da luta pela sobrevivência, das pulsões violentas e da generosidade, do que nos distingue e nos marca como ferro escaldado em brasa. A táctica é um jogo de enganos, de mentiras, de pequenas e grandes trapaças; a estratégia, um Sun Tzu revisitado, um plano de assalto e dominação. 

E depois, pior do que tudo, diz bem do que vê, analisa o que observa de bom mais do que aquilo que é negativo, espanta-se, entusiasma-se, se fosse maestro de touradas estaria sempre pronto a fazer tocar um paso doble, gosta do que faz, deslumbra-se com o deslumbramento de uma vida que reduz a um campo de futebol. Nada de tão verdadeiro, Javier Marias ou Albert Camus fizeram o mesmo de maneiras diferentes. Um campo onde homens são deuses e canalhas, gente que nos faz acreditar e sonhar como sonhei (tanto como o Luís Freitas Lobo) com a equipa brasileira de 1982; Falcão, Sócrates, Zico, Eder, Toninho Cerezo, o que chorei com as três pulhices de Paolo Rossi ao vilão Valdir Peres, uma lástima, um pesadelo. 

Engraçado… Em 1978, acamado de sarampo, a minha mãe ‘ofereceu-me’ uma televisão para que pudesse acompanhar no quarto o mundial da Argentina. Recordo Mário Kempes e milhões de papéis e fitas quando a selecção das pampas, ainda sem pibe Maradona, entrava em campo. Ao ouvir o Luís, quando da estranheza passei à vontade de o ouvir, é sempre a Buenos Aires que torno e ao conforto poético de um sarampo, território de infância onde todos os homens e mulheres voltam a ver a felicidade por breves instantes. 

É o melhor elogio que lhe posso fazer. Habita-me a casa como uma luz de presença, um regresso a um tempo distante. E a casa agradece, conforta-se. Porque sabemos bem o quanto as casas têm sangue, músculos, células, órgãos, energia. Têm a capacidade de escutar, de sentir, ver e tocar. Tornam-se flácidas, envelhecem de cansaço, reagem à solidão, desistem. Sim, por vezes desistem e deixam-se ir. Degradam-se, como nós. Desgraçam-se quando ficam sozinhas, quando deixamos de as habitar, quando deixamos de nos deitar, cozinhar, chorar, ler, ver televisão e ouvir canções. Deixam-se ir mais depressa do que nós. Uma casa não aguenta estar sozinha. Enlouquece. As paredes ganham humidade, as canalizações apodrecem, os móveis parecem outros, a luz torna-se sombria. Uma casa é um ser vivo, um prolongamento do nosso coração. Sem ele torna-se um sepulcro. 

Uma luz de presença, um regresso à infância, ao lugar onde habitamos outro corpo. Falam-me da reencarnação, leio e sou sensível ao tema – mas ocorre-me que talvez não faça sentido recordar vidas passadas quando temos uma de que podemos falar, uma que são tantas. Regresso às minhas fotografias de criança, aos jogos de futebol, à avó e mãe a chamarem-me da janela quando o lusco se tornava fusco… Regresso ao que fui, parece ontem. Em que momento reencarnei no que hoje sou? Em que instante deixei de ser a criança que corria para casa num bairro tão maior do que é hoje? 

De uma maneira ou de outra todos já tropeçámos nesta ideia, voltei a fazê-lo ao pensar que existe um comentador de futebol que se recusa a ser como os outros e começa a ser criticado por isso. Pela simples razão de que passou a ser conhecido, a ser visível, a ser público. Porque só os que não conhecemos bem, ou desconhecemos em absoluto, nos parecem ser a sétima maravilha e um deslumbramento. Com o tempo chega à desilusão porque ninguém é nunca o que existe antes de existir realmente, antes de ser carne e osso e não o que inventámos para cumprir a quota de felicidade que julgamos merecer. Por isso, a superfície é tão perigosa. Viver de projecção em projecção é viver sem ter a coragem de correr a vida como ela é. 

Por aqui não há problema, Luís. A casa/família já se habituou. A luz nunca se apaga