Começo esta crónica na Índia. Sabe bem mudar de ementa. Principalmente para quem anda a vasculhar os tachos de Portugal. Sou um fã da nossa gastronomia mas não me canso de afirmar que é preciso ter regras. Ela tem tanto de saudável como de traiçoeiro para o coração.
O nosso país está inundado de excelentes Mecas de boca. Mas não deixam de ser estufas de colesterol. Muitos dos petiscos são galáxias de gordura e sal. Qualquer amante do bom garfo rende-se à gula. Como tudo na vida, é preciso um q de qb. O meu dia-a-dia de forasteiro de bem comer exige-me uma cautela redobrada. Caso contrário, sou candidato a um futuro AVC pela estrada fora. Mas como dizem por aí ‘fazer sempre o que é certo, por vezes é uma chatice’.
O caril está na mesa. Pode não ser o melhor prato para a dieta, mas traz um novo tempero ao meu estômago. Supostamente devia estar numa tasca portuguesa. Mas não. Estou num restaurante indiano. A heterodoxia não fica por aqui. É a caminho do interior do Algarve. Em São Brás de Alportel. Estranho a existência desta embaixada gastronómica das Índias. Gosto e aconselho. Não vale a pena dizer o nome. É única na vila.
O senhor que me serve só fala inglês. Com a sua simpatia, sacia-me o desejo por caril de frango e arroz basmati. De forma subtil, tento saber o que faz esta alma do país das vacas sagradas, em zona já sem vista para o mar. Explica-me que por aqui reside uma vasta comunidade de estrangeiros. Em particular ingleses. As habitações são mais baratas que na orla marítima e por isso rendem-se num ápice aos encantos da terra. Estão a 15 minutos das praias algarvias.
Pago a conta e peço factura. Meto o casco na cabeça e parto para as entranhas da serra do Caldeirão. Atravesso as ruas de São Brás de Alportel. Por entre casas caiadas impõem-se prédios apalaçados, com cantarias requintadas e varandas de ferro, do tempo dos antigos industriais da cortiça. No meio desta descrição romântica, misturam-se arruamentos vulgares e sem interesse arquitectónico. Sinais dos tempos.
A casca do sobreiro faz parte da economia local. Estou na N2. Barranco do Velho é logo ali ao pé. Tem fortes tradições corticeiras. A paisagem verde de sobreiros e azinheiras salta à vista. Também é famosa pela aguardente de medronhos. Apalpo os bolsos e não encontro lume. Do outro lado da estrada vejo um ‘tirador’ de cortiça. É ele que me dá lume, numa caixa de fósforos. Sorte a minha. Madeira de cedro é o ideal para os charutos. Obrigado pelos nove paus que incendiei para dar brasa ao meu fumo. Ofereço-lhe uma aguardente que bebe num só gole. Eu degustei-a à velocidade do puro que me ocupa durante 50 minutos. Foi uma conversa agradável com o senhor. Não descrevo o conteúdo porque descambou agradavelmente. Em vez de falarmos sobre tradições e assuntos de trabalho, ficamos pelas anedotas e piropos. Coisas de homens adultos.
Arranco. As estradas são agradáveis para andar de mota. Excitantemente sinuosas. Podem levar-nos até Alcaria do Cume, que atinge os 575 metros de altitude. É o máximo que esta serra consegue.
Para variar, faz calor para dar e vender. É um bafo que só me dá vontade de guiar a Macal em pelota. Claro que não o faço. O despovoamento destes concelhos já é considerável.
Reservo dormida ali para o lados de Alte. Num hotel com vistas desafogadas e uma piscina, que reforçam a minha decisão de pernoitar uns dias aqui.
Tudo começou por causa de uma cascata. Estava no Pego do Inferno (Tavira) a dar uns mergulhos. Ouvi da boca de alguém: «Uma das maiores cascatas da região é a Queda do Vigário, em Alte. Tem 24 metros de altura. Vale a pena ir».
Num abrir e fechar de olhos dou por mim na cascata. Já com o Moleskine aberto faço uma aguarela deste refrescante local. É lindo de morrer. Curiosamente, situa-se nas traseiras do cemitério. É um local que precisa de vida. Tem um edifício moderno que já foi chão que deu uvas. Hoje está abandonado. Grafitado com mau gosto. Cheira a chichi dos catraios que fazem fogueiras durante as aventuras próprias da idade. Tem relva e mesas para piqueniques. Aliás, arrisco dizer que Portugal poderá ser um dos recordistas de parques de merendas. Talvez devido à falta de inspiração dos poderes locais. Existem mais parques que utilizadores, mas este valeu o investimento. Necessita apenas de manutenção.
Percorro todas as estradas e estradinhas. Bebo histórias e como historietas que não cabem em quatro páginas. Mas tenho de contar um momento que me aconteceu em Cachopo. Faz um calor que até as cigarras andam em cuecas. De repente, sou ofuscado por um azul clarinho de uma piscina. Metida no meio de densa vegetação. O parque de merendas da praxe também aqui está. Acabo de resolver a minha tarde. Incrível. Não há mais ninguém. Apetece-me guardar em segredo este sítio novo para mim. Não quero que ninguém saiba. Mergulho para pensar sobre o que fazer. Quando venho à tona, respiro de orgulho por ter mais um local para vos sugerir.
Confirmo que tenho combustível no depósito. Está na hora de partir. Apanho a estrada 504 para chegar ao ‘monte’ da Mealha. Chegar a esta aldeia puxa pela paciência. São estradas demoradas. Paira no ar que embate na minha face um ambiente de isolamento. É isto que as populações daqui respiram todos os dias. Os palheiros redondos (construções circulares feitas em pedra solta e terra com telhados de colmo) serviam de habitação aos seus proprietários noutros tempos. Hoje são paredes do passado sem uso e desprezadas. Sinto-me longe. Mesmo longe de tudo. Há silêncio. Estou sentado numa rocha com vista para um vale imenso. Aproveito o momento para escrever esta crónica…
A serra do Caldeirão é a maior cordilheira algarvia. Espreguiça-se como a mais bela rapariga do Algarve. Repousa a cabeça na Ribeira de Odelouca e desvanece-se timidamente nos planaltos do nordeste algarvio. À medida que vamos subindo no mapa, parece que vai tirando a roupa com padrões de amendoeiras, alfarrobeiras e sobreiros. Surge-nos desnudada no Baixo Alentejo, em tons de terra pintada de searas e cevadas. Um perfeito adeus ao Algarve.
Os esverdeados começam a dar lugar aos tons terrosos. As terras são áridas de cultivo e de gente. Pela força da natureza os matos de esteva, urze e medronheiro disseminam-se ao longo dos mil cerros ondulantes que nos embalam as vistas. Parecem-se aveludados. Dão vontade de me deitar sobre eles. Bastava-me ser gigante. Tão grande como a beleza deste país das maravilhas.