Contêm em si todos os elementos capazes de definir a degradação alimentar de um povo. Como num altar mexicano, cheio de cor e ironia, de elementos do Novo e do Velho, de alusões religiosas e pagãs, onde quer que estejam, elas ocupam sempre um lugar de destaque.
São as máquinas de venda automática.
Na semana passada estive cinco horas numa sala de espera, naturalmente à espera de uma consulta. Sentei-me de frente para a máquina de venda automática que ali estava estacionada. Demorei cerca de três horas até ceder finalmente aos caprichos que estas máquinas de venda automática convocam. Acabei com um pacote de quatro bolachas por dois euros na mão.
Para além da máquina de venda automática praticar preços terríveis, a máquina de venda automática expõe o indivíduo. Sempre. Se não der trocos ou ficar com a moeda, então… Ui!…
Numa sala de espera em que todos já nos reconhecemos perfeitamente e já sabemos os nomes uns dos outros porque já nos chamaram para a triagem e nós já fomos a correr esbarrar na porta automática que dá acesso ao sítio onde nos irão tratar, para depois voltarmos para a sala de espera, cada um com a sua pulseira e o seu grau de importância na hierarquia das urgências, e com os pensos na dobradiça dos braços e os frasquinhos para encher e ir entregar à enfermeira, estamos inevitavelmente expostos. Por isso é importante que a interacção do batedor com a máquina seja estudada ao milímetro para que nada corra mal e se saia da empreitada vitorioso.
Calhou-me a mim tal sorte. Ao fim de três horas de existência ignorada, naquela sala de espera, fitei-a. A máquina está ali à minha frente. Tem sumos e águas com gás e sem gás. Tem refrigerantes. Tem chocolates, batatas fritas, sanduíches, bolachas, gomas e fatias de salame. Tem uma mistura de sabores urbanos pós-contemporâneos, filhos da indústria alimentar massificada, com produtos mais tradicionais, como o salame ou as batatas fritas de marca portuguesa e embalagem bem nacional.
A máquina pode ficar horas sem deixar cair um produto, mas quando alguém se levanta e toma a iniciativa de lá ir, é um vê se te avias.
Como nunca como porcarias, tenho uma grande dificuldade em resistir a estas máquinas. É como quando vou à missa: acabo sempre por me ajoelhar a rezar ali uma Ave Maria, não vá a moeda encravar ou o pacote ficar preso nas argolas. No outro dia, não foi excepção.
E planeei a minha investida: olhei discretamente para dentro da mala e percebi que tinha umas moedas soltas, que eram capazes de dar para mais de um produto. Sem me levantar observei cada compartimento e decidi o que queria. Levantei-me com as moedas na mão, o número do produto na retina, e inseri as ditas cujas na ranhura. Poucos segundos depois tinha o pacotinho de bolachas mais caro de sempre a cair para o compartimento-gaveta. Retirei-o e sentei-me. Todo este processo foi observado atentamente pela horda de doentes que se amontoava ali na salinha de espera. O fracasso ou sucesso desta investida ditaria os momentos seguintes. Abri o pacotinho das bolachas que agora já só eram migalhas de bolachas e comecei a depenicar.
Pouco tempo depois, como se o encetar do pacotinho de bolachas validasse alguma coisa, a rapariga que estava ao meu lado levantou-se e trouxe um salame. A família barulhenta que ocupava toda uma ala da sala de espera organizou um peditório e segundos depois montou um banquete com batatas fritas e refrigerantes, digno de um dia de festa. Uma criança começou a chorar por um chocolate, mas a mãe não tinha trocados, e logo uma onda de solidariedade arranjou trocados para que a criança tivesse acesso imediato ao chocolate.
Olhei à minha volta e vi que estava tudo a roer qualquer coisa que a máquina tinha dispensado. Em menos de cinco minutos, com uma sala servida, parecia que o mundo estava livre de doenças. O silêncio era tal que até se ouviam as migalhas a cair nos colos. Toda a urgência unida pela máquina que refrigera batatas e sumos sem olhar a quem.
E percebi que estas máquinas merecem o altar que lhes erguem.
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