Numa altura em que de Hollywood só nos chegam super-heróis e catálogos animados de efeitos especiais, o novo filme de David Fincher acaba por merecer um olhar mais atento. Diz-se que Em Parte Incerta pode já reservar lugar para as nomeações para os Óscares. É um filme que tem o equilíbrio perfeito entre os bons desempenhos, uma realização eficaz e uma história envolvente e inquieta. Não fosse o twist do argumento estar já anunciado no livro que serve de guião ao realizador, este seria um daqueles casos em que o melhor era mesmo guardar segredo sobre Amy Dunne, a mulher bonita que desaparece no dia em que completa cinco anos de casamento.
David Fincher trouxe para a conversa a actriz Rosamund Pike e a troca de ideias não poderia ter corrido melhor.
Qual foi o seu critério na escolha da actriz? Uma inglesa no papel de americana…
David Fincher: Percebi logo que li o livro – e depois o argumento – que a personagem feminina deveria ter uma certa força, uma beleza facilmente adaptável às situações que a personagem exigia. Fui vendo o trabalho da Rosamund ao longo dos anos e sempre me despertou curiosidade. Lembro-me que vi o Bond e recordo-me bem de a ver em Outra Educação. Sempre a vi com um carisma, uma presença que é raro encontrar nas actrizes. Quando começámos a falar de quem ficaria com o papel da Amy, eu fiquei espantado que ma tivessem sugerido. Ao mesmo tempo vieram-me à ideia cenas de outros filmes que ela fez em que eu me questionava sobre a idade que ela pode interpretar… dos 20 e poucos aos 30 e muitos. Ela tem essa capacidade e isso era importante para a Amy.
Foi uma escolha imediata?
Houve um trabalho de preparação. Não nos conhecíamos. Recordo que o primeiro encontro foi em St. Louis. Voei para lá para um encontro de apresentação e acabámos por ficar cinco horas a conversar sobre a personagem e toda a história. Houve desde logo por parte dela cuidados e curiosidade sobre o que pensava e outros pormenores. Não esquecer que estamos a falar de um livro que vendeu milhões de exemplares.
A Rosamound sentiu-se assim tão entusiasmada com a personagem? Será que há muitas Amys no mundo real?
Rosamund Pike: Sem dúvida… Repare que, antes de as coisas se complicarem, eles foram um casal feliz e divertido. A envolvente é que foi degradando essa harmonia e trazendo ao de cima o lado mais tortuoso que vai destruindo tudo em redor… E não quero contar mais. Mas acredito que sim, que há muitas Amys por aí.
Como é que se constrói uma personagem destas?
RP: Confesso que ela é bastante perturbadora porque temos de explorar o que dela existe em nós. [pausa] Quando construímos uma personagem vamos buscá-la aos mais diversos sítios. Apesar de não querermos admiti-lo, também vamos buscar muito de nós próprios. Há muita coisa que vem de dentro. Todo esse cocktail resulta em algo muito perturbador num filme como este. Diria que é um processo inquietante. Quando fazemos um filme romântico, parece que estamos nas nuvens, é tudo muito agradável. E depois fazemos um filme como este, uma personagem como Amy, e sentimo-nos muito mais desconfortáveis. É assim que também entendo a representação e a entrega a uma personagem.
David, não sei se acontece com toda a gente, mas a personagem do Ben Afleck é mais odiosa no livro do que no filme. Foi intencional ou é o 'efeito Ben Affleck' no ecrã?
DF: É verdade, é o 'efeito Ben Affleck'! Mas olhe que eu não o quis adocicar. O Ben é charmoso, o que é que podemos fazer?
É um filme de actores e história. Não há efeitos, não há grandes cenas de acção…
Sim, este filme distancia-se um pouco do cinema de hoje. Como realizador preocupo-me e questiono-me muito sobre que é o cinema, o que deve ser o cinema e para que serve. Gosto de explorar as experiências que se vivem numa sala de cinema. Hoje é tudo muito mais centrado na acção visual, sem preocupação de fazer pensar a plateia. Nesse sentido, este projecto é realmente um filme de desempenhos e história. A mim compete-me contar bem essa história e tirar partido dos desempenhos.
Quando falamos de adaptações de livros ao cinema há sempre um certo desconforto e até dificuldade na forma como se adapta literatura ao ecrã, mas neste caso a autora do livro assina também o argumento. Isso resolveu esse desconforto da adaptação, se é que ele existiu?
Há cenas do livro que no meu entender deveriam estar no guião do filme. Mas em última análise essa responsabilidade é da Gillian Flynn, que escreveu o romance e escreveu agora o guião. Eu aceitei que ela tivesse uma posição muito firme em relação a alguns pormenores. Tive que conseguir dizer-lhe que quando escreve sobre o que pensa a personagem, eu não posso filmar os seus pensamentos, e por isso vai ter que escrever sobre os comportamentos. Foi um processo curioso e de constante diálogo com a autora. Gostei porque ela alinhou plenamente e entendeu perfeitamente. Acabou por ser uma adaptação que fugia um pouco à tradicional adaptação de um livro porque a autora esteve envolvida no processo.
A parceria resultou bem. Pelo menos estão agora a escrever uma série de televisão em conjunto.
Estamos a trabalhar num projecto chamado Utopia e tem corrido bem.
O que podem esperar os espectadores que nunca leram o livro, aqueles a que nada é revelado da história?
Acho que podem esperar que este filme vos revele que tudo o que sabem ou julgam saber é mentira.
Trata-se de um raio X à vida real de todos os casais?
Não sei. Acho que é revelador. Penso que há muita gente que vai encontrar algumas coisas bem reais, mas todos se vão divertir.
RP: Sim, sim. É uma boa história, que diverte as pessoas. Há dias alguém me dizia: 'Eu presumo que…'. Eu disse-lhe logo para esquecer essa palavra. Não se pode presumir nada. Mesmo nada. Por isso o filme é tão surpreendente.