O mestre oriental e os viajantes no tempo

Duelo de gigantes no último dia do Semibreve. O festival de música electrónica despediu-se com uma actuação memorável do japonês Ryoichi Kurokawa, poeta maior de um estilo que combina música e vídeo como se fossem uma só. A noite fechou com os Plaid, históricos deste género, que tocaram uma hora de electrónica à moda antiga.

Ryoichi Kurokawa é uma figura enigmática. Pouco ou nada fala. Entra e sai das salas de espectáculo sem ninguém perceber como. O artista digital japonês, de 36 anos, sabe o quanto isso vale nesta indústria e cultiva a aura de mistério que leva consigo para todo o lado: não dá entrevistas, dentro do palco proíbe as câmaras e fora dele mal se deixa fotografar. E entra em cena com um visual que parece parece tirado a copy-paste de uma personagem de anime. 

Provou isso mesmo antes, depois e durante a sua actuação, ao final da tarde de domingo, dia de encerramento do Festival Semibreve. Trocou as voltas à organização, aparecendo vindo do nada, para depois desaparecer e reaparecer várias vezes, qual espectro que percorre os corredores do Theatro Circo.

Encarado quase unanimemente como o supra-sumo da arte digital e do cruzamento entre o vídeo e imagem, o japonês que vive em Berlim saiu de Braga com a reputação imaculada. O concerto – muito aguardado, a julgar pela casa quase cheia – foi uma espécie de electrocussão audiovisual. Percorre os sentidos de alto a baixo, deixando o público aturdido, numa espécie de transe que só termina quando a música pára, a imagem se desliga e Kurokawa sai de cena, deixando atrás de si uns bons 40 segundos de aplausos.

Há um rigor quase poético no seu trabalho. Imagem e música são pensadas como uma só e coordenadas não apenas ao segundo, mas ao milésimo de segundo. À frenética sucessão de rostos, aves e insectos projectada na parede, corresponde um zumbido aflitivo, ou a uma batida rompante que dita a cadência com que as imagens vão entrando e saindo do nosso olhar. Os vídeos, animações e fotografias que vemos não são acompanhamento visual da música mas antes uma parte do todo, uma performance audiovisual, intitulada “syn”, que já é de 2012 (o japonês está a preparar uma nova, a apresentar em 2016).

Aqui tudo é perfeito. Talvez até, perfeito de mais. Tão perfeito que não há lugar para a imperfeição do improviso, do inesperado, do coelho tirado da cartola. Sim há electrocussão, mas falta, se calhar, o estalo na cara. O susto a meio de um suspiro de alívio.

Talvez seja o rigor nipónico demasiado entranhado no artista. Ou talvez seja Kurokawa a recear dar um passo em falso, nessa corda bamba que é a genialidade. Assim sendo, que fiquem as acrobacias e números de circo para os arrivistas, aqueles que ainda têm muito a provar.

Quem não tem nada a provar são os Plaid, o duo londrino que anda há 25 anos a fazer música electrónica e veio a Braga dar o concerto de encerramento do Semibreve. Considerados uma banda “pós-techno”, trouxeram aquele que terá sido, provavelmente, o espectáculo de mais fácil digestão de entre os seis que passaram pelo palco principal do Theatro Circo.

Em palco, a música dos Plaid soa a muita coisa, muito diferente. Num momento estão a tocar um tema cheio de sonoridades pop dos anos 80, no outro parecem a empurrar-nos para dentro de uma pista de dança dos anos 90, para logo depois surgir uma guitarra pujante que podia ter saído de um concerto de death metal. E há inclusive um tema onde a sonoridade nos transporta para uma praia das Caraíbas, sugestivamente acompanhada de caveiras sorridentes na imagem de fundo.

Ouvir Plaid é fazer uma viagem através de uma parte importante da História da música, usando a electrónica como veículo todo-o-terreno. Mas isso tem sempre um efeito colateral: na sala, não faltou com rotulasse a actuação dos britânicos como “retro”.

Um rótulo que Ed Handley, um dos elementos dos Plaid, aceita mas só em parte: “estamos cá há tanto tempo que obviamente há elementos retro no nosso trabalho, mas não exclusivamente retro”. Em conversa com o SOL, o músico lembrou que os Plaid “não são especialistas em nenhum estilo particular”. O que joga a seu favor pois “para nós, a variedade mantém o interesse. Há quem goste de se especializar mas eu prefiro manter as coisas eclécticas, para continuar a surpreender as pessoas”. 

Os britânicos são o oposto de Ryoichi Kurokawa. Conversadores, amistosos, bem-dispostos, falaram connosco a descontracção de quem arruma o equipamento e faz as malas para voltar a casa. Na bagagem dos Plaid não há espaço para vedetismos: “Actualmente chamam-nos produtores mas no fundo nós só fazemos música, por isso somos músicos. E vamos continuar a fazer música, porque não sabemos fazer mais nada”.

Dia de encerramento é, também, dia de balanço. Em palco as contas não são difíceis de fazer. Pontos altos: Roll the Dice, claro, e Kurokawa, obviamente. Como só sobra mais um lugar no pódio, a escolha recai sobre os Plaid. Os decanos do género são um pedaço da História da música electrónica e provaram em Braga que não vivem só à custa dos rendimentos da reputação amealhada neste quarto de século.

Fora do palco o balanço também não deixa de ser positivo. A organização propôs-se a aproximar este género musical do grande público – ou, pelo menos, de um público mais abrangente – um esforço visível na deslocalização de parte da programação para locais como o emergente GNRation ou a emblemática livraria 100.ª Página. O workshop com walkie-talkies, no último dia, não deixou de ser uma iniciativa inesperada, com a gente da rua a falar para dentro da sala, através de pequenos aparelhos de rádio.

O programador do festival, Luís Fernandes, considera que o Semibreve “correspondeu inteiramente às expectativas – só na noite de sábado tivemos quase 600 pessoas –, tirando dois percalços que nunca tínhamos tido antes, que foram os cancelamentos”. Na sua opinião, o festival está já na roteiro internacional da música electrónica: “sentimos muita procura por parte dos artistas e da imprensa internacional e falta que o festival continue, para potenciar ainda mais essa atracção de público estrangeiro”.

E por falar em continuar, tudo aponta para que o festival regresse para o ano, com a 5.ª edição. Mas um evento destes só é exequível com o suporte do Theatro Circo e da Câmara de Braga. “Nenhum espectáculo destes é sustentável no Theatro Circo. A sala é limitada em número de pessoas, os custos com os concertos a este nível são elevados”, mas a questão, diz o programador, “não se coloca num ponto de vista puramente económico. Há aqui um valor intangível que é um valor cultural e de legado para cidade”.