Recordo os dias e as imagens desse Verão-Outono de 1989: em Maio, a Áustria e a Hungria tinham aberto uma passagem no arame farpado que as separava, permitindo que alemães ‘do lado de lá’ chegassem ao Ocidente. Em Setembro, tinham começado as ‘segundas-feiras de Leipzig’, manifestações anticomunistas na RDA, cada semana dobrando o número de manifestantes e chegando a outras cidades. Em 7 de Outubro, o ‘Grande Irmão’ Gorbachov visitou Berlim e disse aos seus camaradas que não apoiaria a repressão armada da população. Era a doutrina Sinatra: cada Estado socialista seguiria o seu caminho, à sua maneira.
Depois, em 18 de Outubro, Honecker, desautorizado, abandonou a chefia do Partido Comunista; o seu sucessor, Egon Krenz, tão-pouco soube conter as manifestações, cada vez mais fortes. Na precipitação da dialéctica entre «as transigências que rebaixam e as violências que comprometem», um porta-voz comunista, Günter Schabowski, declarou que os direitos de passagem Leste-Oeste iam ser concedidos «ab sofort» – isto é, imediatamente. Os cidadãos do Leste que o ouviram foram então até ao Muro. Lá, os guardas, os Vopos, hesitaram em aplicar a regra do ‘disparar à vista’ sobre os que tentassem cometer o crime de Republikflucht (saída ilegal da Alemanha Oriental). Na hesitação, os berlinenses de um e do outro lado começaram a escalar e a destruir o Muro.
Assim ruiu o Muro. Tinha sido construído a partir do Verão de 1961 e passara a ser um símbolo da Europa da Guerra Fria.
Sou do tempo do Muro. Para mim, Berlim teve sempre um fascínio de metrópolis mágica, assombrada, dividida, cheia das neblinas e dos fumos do Spree, percorrida pelos heróis de Len Deighton e John Le Carré, pelas mulheres de Döblin e Fassbinder, com as memórias dos combates dos Freikorps e da guerra civil europeia. Fui lá pela primeira vez em 1983, num tempo em que lia Jünger e me interessava pela Prússia e pelo romantismo alemão. Era o ano das celebrações, em Berlim Oriental, do centenário da morte de Karl Marx. Atravessei o Muro pelo subsolo, no metropolitano que nos levava até Friedrichstrasse, a estação por onde se passava de uma Alemanha para a outra.
Hoje a Guerra Fria é uma história distante na História, como são essas outras Berlins: a guilhermina da Unter den Linden, a de Weimar do Herren Klub, dos spartakistas e da Marlene Dietrich, a capital do III Reich, sob as bombas, dos wagnerianos últimos dias de Hitler no bunker da Chancelaria, a da Germania Anno Zero do Rosselini, das revoltas operárias contra ‘o partido do Operariado’ dos anos 50, até à do Muro e à da Queda do Muro. Todas, mais as imagens dos anjos de Wim Wenders e a da parábola trágica de Hans-Jürgen Syberberg, Hitler, ein Film aus Deutschland.
Hoje Berlim e a Alemanha estão unidas. Mas esta Alemanha Unida repete o mesmo dilema: é grande demais para a Europa e pequena para o mundo. O que vai fazer?