Se chegou a uma resposta definitiva sobre o assunto, está errado. O problema, proposto por Bertrand Russell (matemático, filósofo e escritor distinguido com o Nobel, nasceu em Gales em 1872 e morreu em 1970, aos 97 anos de idade) na sua opera magna, Principia Mathematica (Princípios da Matemática) escrita a meias com A.N. Whitehead, não tem solução. E não pense que o problema é seu: na época – inícios do século XX, cruciais para grandes saltos em frente da matemática e da física – os pares de Russell e Whitehead entraram em polvorosa. A pergunta deitava abaixo as fundações desta ciência.
Já agora, apresentemos a resposta, dada pelo próprio Russell: “Se contém, não contém, se não contém, contém”. É mesmo difícil, e ficou conhecida como o Paradoxo de Russell. E é um dos momentos de clímax, central – imagine-se – em BD.
A história de Logicomix é no mínimo invulgar. O livro, considerado tanto por especialistas de BD quanto por matemáticos como uma obra de arte, é o resultado do esforço de quatro autores que viram na biografia de Bertrand Russell uma série de ingredientes picantes.
Esses elementos serviriam não para uma obra de peripécias ficcionais, mas para cozinhar um enredo em que o protagonista, além do próprio Russell, é a procura épica dos fundamentos da matemática, que desemboca na separação da lógica como disciplina autónoma, como nota Jorge Buescu, matemático que assina o prefácio da edição portuguesa.
Os autores formam, eles próprios, um conjunto inusitado nestas andanças: um quarteto constituído por três gregos e uma francesa, que integra o escritor adepto da matemática Apostolos Doxiadis, o matemático e cientista da computação Christos Papadimitriou e os autores de BD Alecos Papadatos e Annie Di Donna.
Estavam assim lançados os dados para recriar desta forma original um período da História da matemática que ficou conhecido como da Crise dos Fundamentos. Assim mesmo, em maiúsculas, como explica Jorge Buescu ao SOL: “Não falta nenhum dos protagonistas da Crise dos Fundamentos. Por vezes os autores usam de alguma liberdade artística, inventando encontros entre pessoas que nunca se conheceram para efeitos narrativos. Mas até isso está descrito nos apêndices. Logicomix é uma obra-prima”.
Buescu não tem dúvidas quanto à qualidade e ao rigor da obra. Os autores concluem que a busca de Russell acabou por ser um falhanço, se tivermos em conta a imensa ambição com que a propôs desde a juventude. Esta conclusão é controversa e chega a ser motivo de conflito entre os responsáveis pela narrativa e o 'supervisor científico' da obra, um papel que coube a Papadimitriou. Mas não se furtaram a mostrar também os conflitos durante a realização da obra. Logicomix é, por isso, um filho da lógica, na medida em que se auto-referencia, ou seja, reflecte sobre si próprio.
Nas vésperas do computador
O resto da história, a real e a ficcionada, mostra os caminhos que Russell abriu com a sua demanda. Um deles, continua Jorge Buescu, é hoje uma banalidade nas casas e nos escritórios de todo o mundo: “O conceito abstracto de um computador – a que se chama máquina de Turing – é uma consequência imediata desta história. Do conceito abstracto à construção física de computadores seria uma história igualmente longa – e, curiosamente, também com a intervenção de matemáticos, como Von Neumann”. Alan Turing e John von Neumann são, de resto, mencionados no livro.
Ao contrário do que se passou noutras épocas históricas e noutras áreas, não há portugueses envolvidos. E apesar de esta efervescência ocorrer em simultâneo com um período de ebulição nacional – a I República – o nosso estatuto de isolamento ainda era intenso. “Nesse período houve apenas um matemático português de estatura internacional: Francisco Gomes Teixeira. Mas, em primeiro lugar, Gomes Teixeira era um analista e não um lógico; e, em segundo lugar, há cem anos o preço que Portugal pagava por ser periférico era o isolamento, o que é fatal para a Ciência”, nota Jorge Buescu.
No caleidoscópio narrativo desta obra não falta também um olhar sobre o que era a sociedade antes da tal Crise dos Fundamentos. A passagem de Russell para a maturidade acompanha um sistema em que muitos conceitos da matemática eram dados adquiridos. Faltavam as provas e a fundamentação.
Uma vida atribulada
Em paralelo, o jovem vivia cercado por uma avó autoritária, temente a Deus – e sobretudo ao conhecimento, que era proibido – e um avô que partiu cedo. Russell tinha perdido os pais e uma irmã mais velha, sendo confiado à guarda dos avós.
Mas descobriu por si mesmo qual tinha sido o destino dos pais. Para a avó, era outro interdito – os progenitores de Russell tinham vivido em triângulo amoroso numa época difícil para tal abertura de costumes.
O matemático-filósofo reproduziria mais tarde não um mas vários triângulos amorosos no seu último casamento, com Dora Black. Com ela tentou também estabelecer uma nova filosofia de ensino, ultraliberal, em que os alunos não eram submetidos a qualquer tipo de disciplina. O fracasso foi total, como assume Russell a dada altura, no livro. A lógica matemática é muito diferente da irracionalidade da vida. Esta pode ser a outra moral a retirar de Logicomix, uma experiência singular no universo da BD.
No entanto, a nona arte vai-se abrindo cada vez mais a temas científicos. Jorge Buescu recorda alguns exemplos. “Em anos recentes”, diz, têm surgido “algumas novelas gráficas de grande sucesso sobre Física e Matemática. Li há pouco tempo a extraordinária biografia Feynman, de Jim Ottaviani”.
Em Itália, outros autores renderam-se às ciências exactas. Ultima Lezione a Gottinga, de Davide Osenda, e Enigma – la Strana Vita di Alan Turing dão um lugar à matemática no panteão dos quadradinhos. “Curiosamente, parece ser um género que vem para ficar”, conclui Buescu.