Este texto será todo escrito de olhos rasos, porque de facto, depois de ver novamente o documentário que Richard Press realizou sobre ‘Ele’ em 2010, e dado o meu estado de graça, é impossível não chorar por saber que a eternidade física não ‘Lhe’ está reservada. Nem a ‘Ele’, nem a ninguém.
Falo-vos do homem de voz roufenha que narra os vídeos de street style no New York Times, Bill Cunningham.
Numa altura em que cada vez se crucifica mais a moda e a cultura que lhe está associada, o Photoshop, a magreza, o culto das celebridades e a importância do parecer; que se associa cada vez mais o fracasso estético (e ético) individual às exigências da moda e às suas frivolidades, por exemplo, ainda podemos agradecer por existir Bill Cunningham (e consequentemente o seu legado), para que se possa provar ao mundo não só a sua importância histórica e conceptual para a sedimentação de conhecimentos claros nas disciplinas associadas à moda que, hoje em dia, parecem desgarradas ou fora de contexto.
O interesse de Cunningham pela moda remonta à primeira metade do século passado, depois de ter desistido do ensino universitário para abrir um ateliê de chapelaria muito promissor, adiado no entanto pelo dever de servir a pátria. Regressado a Nova Iorque na década de 1950, Cunningham recebe das mãos de um amigo inglês a sua primeira máquina fotográfica, com a recomendação de a utilizar como um bloco de apontamentos. Que desde sempre partilhou connosco.
O homem do work jacket azulão já gasto, que diz não poder considerar-se fotógrafo porque o que lhe interessa é o conceito, percorre as ruas de Nova Iorque por conta própria, de bicicleta, à espera de se surpreender. Corre atrás das pessoas para as fotografar. Interessa-se por cidadãos anónimos, cuja interpretação da máscara social lhe suscite algum interesse ideológico. Não fala com elas. É fascinado pela criatividade individual de quem faz mais do que simplesmente vestir-se. Ou pela criatividade de que se veste ‘assim’, sendo que o ‘assim’ é a designação própria de uma extravagância enraizada no ser.
Cunningham entende o seu tempo (que no fundo são todos os tempos).
Ao rever Bill Cunningham New York, documentário de 2010, percebi que, nestes últimos quatro anos, a imagem criada em torno de todas as disciplinas e conceitos concomitantes da moda, pelas quais Cunningham é responsável (candid ou street style), em muito têm contribuído para que o cidadão comum esteja cada vez mais disponível para travar a batalha da erradicação da moda das páginas dos jornais ditos ‘sérios’, por este ser um não-tema, por descredibilizar a seriedade da imprensa e por ser responsável pelo afastamento dos grandes temas das mesas de discussão.
No entanto este Senhor deve ser observado com outros olhos e apreendido de outra forma; devemos com ele aprender que há ainda quem encare o seu trabalho com grande rigor, enorme nobreza e, acima de tudo, com a alegria e satisfação próprias de quem nunca se encostou a nenhuma poética estanque. Sabiam que Cunningham é o maior asceta do sector mais crucificado do mundo? Menos materialista do que os políticos nórdicos, imagine-se!
A operar desde o que muitos consideram epicentro do Ocidente, Cunningham observa e analisa a sociedade através das suas contracções estéticas e tem a capacidade de se relacionar com o presente e o passado sem qualquer tipo de rancor, mas sim com entusiasmo. Aos 85 anos. É o último da sua espécie. É um dos grandes humanistas, um dos grandes artistas, um dos grandes profissionais, uma das maiores figuras do nosso tempo, um daqueles seres mitológicos que nunca se vendeu. Um dos que, por estar na moda, nunca será condecorado pela sua importância e contributo exemplares para a reflexão sociológica dos sécs. XX e XXI.
Talvez seja por isto que tanto me interesso por moda: porque é o sector mais subvalorizado de todos, mas o único que ainda é capaz de nos surpreender em qualquer estação da nossa vida.
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