Irreverências da idade

Não há dúvida de que os primeiros contactos que temos com a política se fazem dentro de casa: enquanto adolescentes somos a oposição sempre pronta a atacar o poder vigente, obsoleto e conservador, representado pelos Pais, que basta levarem com um acento agudo para passarem a representar outra coisa. A guerrilha planeia-se, barricados no quarto.…

O meu visto gold para a rebelião adolescente, que me serviu de cartilha política e ideológica, foi o punk. Encontrámo-nos através da música, da estética e mais tarde da arte que lhe está associada.

Além da imagem das cristas e dos bandos de cuspidores de fogo, malabaristas e fazedores de bolhas de sabão gigantes acompanhados por cães atados com um cordel, o punk é altamente conceptual e ideológico, é muito mais complexo do que o piercing no nariz e a capacidade de beber vinho de pacote 365 dias no ano. Há punks muito famosos e bem sucedidos em todas as áreas. Hoje em dia está assente num sistema de valores sólido que rejeita o capitalismo, o fascismo ou a gratuitidade. Ainda assim importa sublinhar que o punk os 'aceita' como contingências inevitáveis à existência, e defende que o ideário da desigualdade pode ser combatido no dia-a-dia através do exercício de uma cidadania consciente e global. Nem sempre é um caminho fácil, mas é possível.

Vivienne Westwood é o melhor exemplo de punk que deu 'pró' torto. É uma das embaixadoras desta ideia das 'irreverências próprias da idade'.

Conhecida no meio por ter sido a mulher de Malcom McLaren, o lendário manager dos ainda mais lendários Sex Pistols, a banda mais comercial que o punk inglês ofereceu ao mundo, Westwood nem sempre foi uma figura consensual, em grande parte por ter sido a responsável pela sistematização e mercantilização de um 'estilo punk'. Terminada a relação com McLaren, Vivienne seguiu caminho pelo mundo da moda, tendo-se estreado com a sua primeira colecção a solo em 1986. É, desde então, a matriarca da irreverência na passerelle, aquela cuja imagem vitoriana deixa transparecer não só uma excelente formação estética, como também uma força fria e um rigor dignos de tudo, menos de um punk.

Já era esperado que a fidelidade de Westwood ao punk fosse tão estética quanto as suas criações. Ainda assim, fazendo Westwood parte do conjunto de pesos pesados do movimento, é relativamente impossível escapar-lhe e à sua alegada 'ironia'.

Vivienne, a ex-operária com aspirações burguesas convertida em primeira-dama punk, começou a dar sinais da sua fraqueza ideológica no final da década de 1980, ao ser capa da revista Tatler vestida de Margaret Thatcher, sob o título 'Esta Mulher já foi Punk'. O fato que Vivenne tem vestido ter-lhe-á sido encomendado por Thatcher, facto que à partida denuncia a sucessão de cedências por vir. A Vivenne punk jamais vestiria Thatcher.

Ora bem, punk que é punk, por melhor stylist que se seja, não combina com a aceitação da Order of The British Empire que recebeu das mãos da rainha Isabel II em 1992 ou com o apoio público ao Partido Conservador, pelo que não é então de espantar que Westwood diga coisas como “os pobres deviam comer menos” ou “a roupa devia ser mais cara”.

Então anda meio mundo a lutar pela democratização do acesso aos bens de consumo, e a outrora pioneira de um certo movimento de libertação, à custa do qual encheu os bolsos, causa 'polémica'? Não pode considerar-se polémico este tipo de afirmações vindas da boca de um conservador, mas quando se trata de alguém a quem se imputa uma certa história, a coisa muda de figura e assume-se como um escândalo. Não há razão para alarme, é apenas vira-casaquismo. Dizem que vem com a idade.

Das duas uma, ou tudo isto não passa de uma irreverência do final da idade, ou como cantaria Claudisabel, “preciso de um herói” que se mantenha fiel aos seus ideais até ao final. Mais que não seja para que se possa vender a ideia de que os ideais não são passageiros e que a luta pela desigualdade não chega com o primeiro cabelo branco.

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