Numa das zonas mais antigas da capital, no Regueirão dos Anjos, n.º 69, reúne-se, todas as quartas-feiras, a Cicloficina dos Anjos, a mais emblemática cicloficina da cidade. Amigos, companheiros ou apenas aficionados das duas rodas juntam-se ao final do dia para reparar bicicletas, partilhar peças, histórias e experiências. Às vezes, são mais de 40. Tudo sem ganhar um tostão.
“As cicloficinas nasceram em contraposição ao desenvolvimento do sistema de mobilidade assente no automóvel”, conta Matteo Sarna, um italiano de 28 anos que trouxe de Roma a paixão pelo conceito. “O objectivo é chamar a atenção para os direitos das bicicletas à circulação, num mundo dominado pelos carros”, revela. Mas a cicloficina é também um “local onde se aprende e partilha conhecimento sobre reparação de bicicletas”, acrescenta Matteo.
Quem quiser, pode aparecer nos dias de funcionamento e será ensinado a reparar a sua bicicleta. Embora tenha uma caixa para donativos, “para que cada um possa contribuir com o que puder despender”, não é cobrado nenhum valor pelo serviço. Até as peças de substituição são donativos de pessoas ou partes de bicicletas abandonadas na rua.
Uma ideia italiana
A Cicloficina dos Anjos nasceu em Março de 2011, “a partir de uma ideia que João Branco, um dos fundadores, trouxe de Itália”, conta Tiago Carvalho, 33 anos. “Já existia uma cicloficina em Lisboa, mas era itinerante e estava muito mal apetrechada, pois não tinha peças, nem bicicletas”. Foi então que Tiago e um grupo de amigos decidiram meter mãos à obra. “Já nos conhecíamos da Massa Crítica, um passeio informal de bicicleta que acontece em várias cidades do mundo, todas as últimas sextas-feiras de cada mês”, explica. “Não tem organizadores: as pessoas encontram-se num local e decidem o percurso por consenso, constituindo uma forma de consciencializar os peões e os automobilistas para a bicicleta enquanto meio de transporte”, acrescenta este co-fundador do projecto.
Graças à associação RDA 69, detentora do espaço, a Cicloficina dos Anjos não paga renda nem electricidade. Apesar de manter um núcleo duro mais regular, os membros vão e vêm, consoante a sua disponibilidade.
Quanto aos clientes, são “pessoas de todos os tipos, idades, estilos e classes sociais”, conta Matteo Sarna. “Vem muita gente de bairros difíceis, que vêm não só para reparar a bicicleta, mas também para sentir o ambiente e a liberdade que se vive neste espaço. Muitas vezes, ao reparar uma bicicleta, sentimos que estamos a ajudar a reparar o seu dono também”, diz o italiano.
Além de fazer reparações, a Cicloficina dos Anjos organiza também passeios e encontros de bicicletas. Tem um blogue e uma página no Facebook e pretende, em breve, dar aulas no YouTube (os famosos tutoriais) para ensinar as pessoas, em casa, a reparar as suas próprias bicicletas. Para manter o espírito da sua fundação, a independência e a horizontalidade na gestão e nas decisões – não tem presidente nem corpos sociais -, a Cicloficina dos Anjos não aceita qualquer tipo de patrocínio. Mas, nem por isso deixa de ter apoios. Recentemente, o projecto venceu um prémio da Comissão Europeia para a atribuição de fundos no contexto da mobilidade urbana. Com alguns milhares de euros, a Cicloficina dos Anjos tem agora a missão de implementar duas cicloficinas, na Faculdade de Ciências e na Faculdade de Belas Artes, ambas em Lisboa. “Uma cicloficina constrói-se de baixo para cima e tem a ver com um grupo de pessoas que se mobilizam, segundo algumas regras, para proporcionar um serviço para lá da lógica do lucro, num contexto de convívio, voluntariado e amizade, em torno da bicicleta”, sublinha Tiago Carvalho. “Com este prémio pretendemos dar essas dicas aos estudantes, mostrando que a bicicleta é muito simples e que qualquer pessoa pode aprender a resolver os seus próprios problemas”, explica orgulhoso.