Formação ajuda polícia a lidar com crianças

João foi violado pelo pai durante seis anos, até ao dia em que ganhou coragem e contou à professora. Entre lágrimas, o relato do que estava a sofrer este adolescente de 14 anos foi depois repetido mais cinco vezes: ao agente da Escola Segura, ao médico do hospital para onde a professora o encaminhou, à…

Formação ajuda polícia a lidar com crianças

É para evitar situações como esta – crianças ouvidas várias vezes, quando só a PJ as pode inquirir – e reforçar a articulação entre os órgãos de polícia que vão ser formados milhares de agentes da Polícia de Segurança Pública (PSP), Guarda Nacional Republicana (GNR), PJ, Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) e Polícia Marítima. A iniciativa 'Um olhar comum sobre a Criança' partiu da Comissão Nacional de Protecção de Crianças e Jovens em Risco (CNCJR) e destina-se a “aferir conceitos, procedimentos e actuações que estão relacionadas com crianças e jovens”, explica ao SOL Fátima Duarte, formadora da CNCJR. 

300 agentes em formação

Neste momento, estão a ser formados 300 agentes que depois darão formação aos efectivos policiais. Além do tema dos abusos sexuais, os agentes estão a receber formação noutras áreas: responsabilidades parentais, maus-tratos e sistema tutelar educativo. 

O objectivo é que os polícias percebam como agir quando estão perante menores. Rute Agulhas, psicóloga do Instituto Nacional de Medicina Legal, lembra que a lei diz que os crimes sexuais são investigados pela PJ e que os outros agentes não podem inquirir as vítimas. “Mas na prática, não é isso que acontece”, explica. “Se a queixa é feita na esquadra, alguns agentes falam com os miúdos. Esta revitimização, em que a vítima recorda várias vezes o sucedido, é um mau-trato sobre a criança que vai ficando anestesiada emocionalmente”. 

A especialista forense, que faz perícias psicológicas pedidas pelos tribunais – usadas para avaliar as capacidades cognitivas das vítimas – alerta ainda para outro problema: “Ao fazerem perguntas, às vezes os agentes fazem juízos de valor, culpabilizam os menores, que vão incorporando estes sugestionamentos externos. Isso contamina o testemunho. Quando é ouvida pelo tribunal, a vítima já fala sem emoção e isso pode levar a uma leitura distorcida”.

No caso de João, recorda Rute Agulhas que fez a sua avaliação psicológica, nem foi possível escutar o relato do jovem na primeira entrevista. “Pediu-me desculpas, entre lágrimas, disse que tinha muita vergonha e que já tinha contado muitas vezes”. A psicóloga ainda sugeriu que pegasse numa caneta para se exprimir de forma menos dolorosa, mas João teve um ataque de pânico, ficou quase sem respirar, e teve de ser assistido por um médico.

Como retirar de casa uma criança exposta à violência

A formação aos agentes está a decorrer em grupos que envolvem as cinco polícias e pretende debater assuntos práticos: como retirar de casa uma criança exposta a violência doméstica; como perceber que um menor é maltratado; como abordar um delinquente que fugiu de uma instituição ou um jovem encontrado embriagado na rua; como detectar se uma criança que está no aeroporto com um adulto é vítima de rapto, como agir perante pais que usam os filhos em lutas pessoais. “Há polícias que já estão familiarizadas com estas questões, pois têm muitas ocorrências com menores, mas outras, como a Polícia Marítima, ainda estão a começar. O importante é que actuem da mesma maneira”, diz Fátima Duarte.

Na abordagem aos menores, “tem sido feito um grande caminho”, acrescenta a subcomissária Joana Reis, da Direcção Nacional da PSP, onde “há 20 anos nem sequer a polícia era chamada para estes casos”. Hoje, se é necessário retirar uma criança de casa, a PSP vai em carros descaracterizados, com cadeiras de bebé, e recorre a agentes mais habilitados a lidar com vítimas. 

Agentes não devem mediar conflitos entre pais

Nos casos de violência doméstica, conta Joana Reis, há crianças que choram para ficar com os pais e outras que, pelo contrário, “estão tão fartas daquele nível de violência que agradecem que alguém as tire de casa”. Há ainda casos em que são as próprias crianças a chamar a polícia.

Na actividade da PSP, as situações que envolvem menores já fazem parte do dia-a-dia e estão a aumentar. Segundo dados enviados ao SOL, em 2012 foram associados como vítimas num processo 848 menores, número que já foi ultrapassado este ano. Mas além de vítimas, os jovens são também associados à criminalidade, embora aí os números estejam a baixar: em 2012, foram 950, este ano, 706.

Os casos que envolvem pais separados são frequentes. “Ligam ou vão à esquadra queixar-se que o outro não entrega o filho ou não cumpre o que está no acordo de responsabilidades parentais”, conta Joana Reis, sublinhando que estas situações são muito dolorosas para as crianças. “A PSP não dirime conflitos de natureza privada mas às vezes, na tentativa de ajudar, os agentes acabam por mediar o conflito”, admite a subcomissária. À polícia compete apenas encaminhar os pais para o tribunal ou fazer um aditamento ao processo, informando que um dos progenitores está a queixar-se do incumprimento do outro. “Já houve até pais que usaram a esquadra para fazer a entrega do filho”.

Nos casos concretos em que um dos progenitores reclama o direito de levar o filho, acrescenta a subcomissária da PSP de Lisboa Aurora Dantier, “avalia-se o superior interesse da criança naquele momento”: “Se está nervosa e a chorar, não a deixamos ir”.

rita.carvalho@sol.pt