Tchaikovsky foi um dos primeiros compositores que André Teodósio interpretou numa orquestra. O homem forte dos sempre inconvenientes Teatro Praga estaria, no entanto, muito longe de imaginar que acabaria o ano de 2014 a recriar uma das obras-primas do compositor russo.
O Quebra-Nozes é um dos três clássicos de Tchaikovsky, considerado o epicentro do ballet clássico. Uma espécie de ‘vaca sagrada’, intocável e à qual deve ser prestada reverência. Exige, por isso, muita coragem de quem decide reinterpretá-la, trazê-la para o presente, fazê-la olhar para o futuro. Foi esta a posição de Luísa Taveira, directora da CNB, que convidou André Teodósio, reconhecido pelo seu trabalho fracturante e distante dos cânones, para repensar o clássico, ao lado do ex-bailarino e coreógrafo Fernando Duarte.
Mas se para Duarte, que já havia recriado um outro clássico, O Lago dos Cisnes, este desafio foi natural, para André Teodósio este convite trouxe muitas dúvidas. Foi a insistência da directora da CNB que o levou a aceitar.
O Quebra-Nozes original estreou-se em Dezembro de 1892, em São Petersburgo, baseado numa versão de Alexandre Dumas, tendo sido muito mal recebido na Europa, mas acolhido com sucesso nos EUA. Foi esta dicotomia que marcou o ponto de partida de André Teodósio. «Não queria fazer um travestismo nem desconstruir o espetáculo, mas queria repensá-lo. Foi esse lado ‘emigrante’ do espectáculo que me mostrou o que queria fazer e a importância das dicotomias», explicou.
O resultado é este Quebra-Nozes Quebra-Nozes, assim, em duplicado. Porque é um Quebra-Nozes que quebra O Quebra-Nozes, que quebra convenções, que as questiona, sobretudo. «Este é o espectáculo mais complexo que alguma vez fiz. Tem imensas ideias, imensas metáforas e mostra que temos várias identidades e que somos todos feitos de vários mundos, ao mesmo tempo que continua a ser um bailado romântico. Sobretudo mostra-nos que o final, no espectáculo tal como na vida, está sempre em aberto».
Para esta versão ‘em aberto’, André desafiou dois cúmplices de outros trabalhos: os artistas plásticos João Pedro Vale e Nuno Alexandre Ferreira, cujo trabalho é marcado por questões de género. A dupla nunca tinha visto O Quebra-Nozes, e talvez pela não existência desse imaginário, partiu para esta criação sem amarras nem constrangimentos. Foi isso, de mão dada com a encenação e dramaturgia de André Teodósio – sem nunca esquecer o classicismo do movimento do ballet que nunca aqui está em causa –, que permitiu criar estas duas horas de um devaneio onírico, onde os tutus nem sempre estão na cintura, onde há pin-ups com tatuagens, uma vilã que é metade Minnie metade Wonder Woman, figuras retiradas de um ringue de wrestling, chineses com chapéus que são smiles, ou até uma terra chamada Candy Darling, actriz-actor fetiche de Andy Warhol.
«Onde é que está escrito que tem de ser assim e não de outra maneira? O nosso exercício foi sempre questionar, fazer com que uma coisa leve a outra, criar uma multiplicidade de leituras, como, por exemplo, mostrar que as iniciais de Quebra-Nozes são também as iniciais de Queer Nation», explica João Pedro Vale.
As camadas deste Quebra-Nozes são ilimitadas. As interpretações sucedem-se. As leituras atropelam-se. O ballet está sempre lá, mas as crianças vão ver uma história, os adultos vão descobrir outra, carregada de mensagens subliminares, por vezes até perversas. A protagonista, a pequena Clara, que se apaixonou por um quebra-nozes em forma de soldadinho que acaba por ganhar vida e transformar-se num príncipe, chegou ao século XXI. E os clássicos, afinal, não são intocáveis.
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