«O Natal na minha casa começava a 8 de Dezembro, dia de Nossa Senhora da Conceição, com uma mesa comprida cheia de doces feitos pela minha mãe», recorda Virgílio Gomes, professor, cronista e autor do recente livro Doces da nossa Vida – Segredos e Maravilhas da Doçaria Tradicional Portuguesa (editora Marcador). Hoje, na sua casa em Lisboa, muito longe dessa infância passada em Bragança, recorda as histórias da meninice vividas na cozinha «junto a uma grande lareira, onde havia potes de três pés com água, ossos de presunto e alguma confecção de cozedura lenta». Ali ficava a ver a mãe e a tia Inês ao fogão a prepararem o pudim de maçã, com a receita escrita no coração e tendo como medida uma mão cheia de carinho e outra de afecto – «era uma receita só delas», garante.
Talvez tenha sido aí que o interesse pela história da gastronomia tenha despontado. Hoje, tem a sua casa transformada numa biblioteca que vai aumentando exponencialmente à medida das pesquisas que faz para saber as histórias escondidas por trás ora dos doces ora dos petiscos (lançou o ano passado o Tratado do Petisco) ou até sobre a sua região natal, Trás-os-Montes.
Sentado na sua sala, tira do bolso aquela que é para si uma das mais palpáveis recordações de Natal em criança: «Anda sempre comigo na carteira, como um amuleto: é uma pomba do Espírito Santo em medalhinha que saiu no bolo rei há muitos, muitos anos». «Lembro-me de em criança o meu pai mandar vir do Porto o bolo rei – vivíamos em Bragança – e a nossa grande preocupação era descobrir quem é que ficava com a fava e com o brinde. Era um acto de partilha, um acto convivial de estar à mesa, à volta do bolo rei».
Considera, por isso, a doçaria natalícia «doces de aconchego». «Por exemplo, é raríssimo vermos sonhos fora do Natal!». E o que dizer das rabanadas? «É talvez dos doces mais transversais e simbólicos do Natal, embora tenham várias histórias e vários estilos. Pode ser simplesmente um pão fatiado que é molhado em leite, envolto em ovo e que vai a fritar, como pode ser um leite que foi fervido com um bocadinho de baunilha. A diferença está também na calda de açúcar que é enriquecida com um vinho, com erva doce, com frutas cristalizadas ou com frutas secas e que depois vai regar as rabanadas. Para mim, só ao fim de três dias, quando estão bem molhadinhas, é que estão boas!», admite.
Pertencente a uma geração para quem a partilha na mesa era uma forma de educação – «havia atractivos associados a esse convívio como a partilha de histórias» -, Virgílio lembra os doces com nomes de santos, que começavam a chegar às mesas a partir do início de Dezembro, atravessavam o Natal e iam até ao dia de Reis, constituindo a forma mais directa e simples de dialogar com as entidades a quem se queria pedir ou agradecer. «Os doces votivos remetem-nos para uma situação emocional de crença associada a um diálogo, em que a pessoa que os confecciona e oferece quer sentir uma aproximação ao divino». Virgílio acompanha-nos assim numa viagem pela história dos doces tradicionais – mas menos pop – do Natal, para mostrar que não é só de bolo rei, sonhos, filhoses ou rabanadas que se faz a consoada.
Bexigas de São Lázaro
São Lázaro celebra-se a 17 de Dezembro e o seu nome, de origem hebraica, significa o que Deus ajudou. É em Trás-os-Montes que se encontram estas bolachinhas vocativas que remetem ao santo protector dos leprosos e de todas as doenças da pele. «A bolacha tem uma característica fundamental que é uma dedada no centro para fazer lembrar uma escara na pele», esclarece Virgílio. «Façam uma experiência nova e aumentem a variedade da doçaria nas mesas de Natal. E assim ajudam ao renascer de uma tradição regional que se espera não perder».
Bolo de mel
Estamos mesmo a falar do bolo de mel da Madeira, que nasceu como doce natalício e que, pela sua capacidade de durar o ano inteiro, impõe-se nos outros meses do ano. «Este bolo era confeccionado para a festa de Nossa Senhora da Conceição, a 8 de Dezembro, e manter-se-ia como elemento obrigatório durante todo o período natalício até ao dia de Reis, a 6 de Janeiro». Virgílio conta que era habitual, nos primeiros dias de Dezembro, comerem-se os bolos que haviam restado do ano anterior, antes de confeccionar os novos. Um dos locais mais antigos que os continua a produzi-los é a Antiga Fábrica de Santo António, fundada em 1893, no Funchal.
Bolinhos de arroz
«Estes bolinhos apenas se faziam a partir do dia 8 de Dezembro e eram obrigatórios nas refeições de Natal e ano novo e chegavam muitas vezes até ao dia de Reis», conta. São uma espécie de sonhos, mas feitos à base de arroz e farinha e, como lembra o autor, «não serviam de sobremesa. Eram uma gulodice pós-sobremesa ou petisco doce entre refeições. No Natal havia o costume de os oferecer às visitas. Na minha casa acompanhavam com café ou chá; os mais atrevidos acompanhavam com vinho do Porto».
Pitos de Santa Luzia
«Os Pitos de Santa Luzia devem comer-se no dia 13 de Dezembro, data das celebrações daquela santa, protectora dos olhos». Virgílio lembra-se de ir nesse dia à igreja de São Francisco, em Bragança, onde havia um altar dedicado a Luzia e onde se cumpria o ritual de tocar com a toalha do altar nos olhos para pedir protecção. Quanto aos pitos, imitam os pequenos pachos que se costumavam fazer com papas de linhaça, embrulhada num pano de linho para descongestionar os olhos. Na sua versão doce, são uma massa sovada em forma de trouxinha, recheada com doce ou compota de abóbora. Apesar de se fazer a 13 de Dezembro, a sua tradição estende-se até ao término das festividades natalícias, pelo menos em Trás-os-Montes.
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