O Ferrari preto que abalou a China vermelha

Um Ferrari, na China, pode custar o equivalente a 50 anos de salário de um ministro, mas Ling Jihua, o líder acusado esta semana de “grave violação da disciplina”, acabou por pagar um preço muito mais alto.

Ling Jihua, 58 anos, era uma figura proeminente da elite comunista chinesa quando o seu filho morreu ao volante de um Ferrari, em Março de 2012.

O acidente ocorreu às quatro horas da madrugada, numa das seis circulares de Pequim.

Por o piso estar escorregadio ou qualquer outro motivo, o veículo – um Ferrari 485 Spider preto – despistou-se e embateu contra um muro, ferindo as duas acompanhantes do condutor, uma das quais acabaria por falecer. 

O Ferrari, avaliado em seis milhões de yuan (800.000 euros), ficou partido em dois.

Um jornal local noticiou o acidente, mas sem referir a identidade das vítimas. Dois dias depois, a notícia desapareceu do site da publicação. 

Nas redes sociais chinesas, utilizadas por mais de 300 milhões de pessoas, começou logo a especular-se que o condutor "só podia ser um privilegiado", filho de um líder político ou de um dos novos milionários do país. 

Apesar do rápido desenvolvimento económico da China e da melhoria do nível de vida da sua população, em 2012, o rendimento anual per capita nas zonas urbanas rondava os 24.500 yuan (3.200 euros). 

Todas as pesquisas na internet sobre "Ferrari", "Ling", "Pequeno Ling" ou "Príncipe Ling" foram, entretanto, bloqueadas.

Ling Jihua dirigia na altura a secretária-geral do Comité Central do Partido Comunista Chinês (PCC), um dos organismos mais poderosos da organização, e trabalhava directamente com o então presidente, Hu Jintao. 

Era considerado uma "estrela promissora" da política chinesa, com possibilidades de entrar para o Politburo no XVIII Congresso do partido, em Novembro de 2012.

Segundo uma investigação publicada no verão daquele ano em Hong Kong, Ling tentou encobrir o acidente e comprar o silêncio das outras vítimas, recorrendo a fundos desviados de grandes empresas estatais. 

Durante meses, não mostrou sinais de luto pela morte do filho e manteve a sua rotina de trabalho, mas o esquema não resultou, concluiu o jornal South China Morning Post.  

Ainda antes do XVIII Congresso, que consagraria a ascensão ao poder de uma nova liderança, encabeçada pelo vice-presidente, Xi Jinping, Ling foi afastado da secretaria-geral do Comité Central e despromovido.

Já na era Xi Jinping, assumiu o cargo de vice-presidente da Conferência Política Consultiva do Povo Chinês, um órgão politica e socialmente prestigiado, mas sem poder executivo.

Confirmando a perda de influência de Ling Jihua, dois dos seus irmãos – Ling Zhengce e Ling Wancheng – foram presos por corrupção. 

Quase três anos depois do acidente que envolveu o filho de Ling Jihua, muitos pormenores em torno de "o caso do Ferrari" continuam a ser segredo de Estado.

Na passada terça-feira, um dia depois de a Comissão Central de Controlo e Disciplina do PCC ter anunciado que estava a "investigar" Ling Jihua, um jornal oficial identificou o condutor do Ferrari apenas como "parente próximo" daquele antigo líder.

O filho de Ling Jihua, Ling Gu, tinha 23 anos. Frequentava a Universidade de Pequim (Beida) e, como a maioria dos jovens urbanos da sua geração, era filho único.

A corrupção é uma das principais fontes de descontentamento popular na China, a par da poluição e das crescentes desigualdades sociais.

Não são fenómenos exclusivos da China, mas a China também não é um país como os outros. Segundo a sua Constituição, trata-se de "um Estado socialista, liderado pela classe trabalhadora e assente na aliança operário-camponesa".

Lusa/SOL