Desperdício zero

Na vida de Hunter Halder todos os caminhos parecem ir dar a Fátima. Em 1988 ainda morava em Richmond, na Virginia (EUA), de onde é natural, quando foi presenteado com uma peregrinação a Fátima pela congregação da igreja que frequentava. “Eu e mais 100 senhoras de cabelo branco”. Na altura, o “jovem de 38 anos”…

Desperdício zero

A ideia, posta em marcha a 9 de Março de 2011, nasceu com e para combater a crise. Hunter Halder já tinha chegado aos 60 anos e vivia há duas décadas em Portugal. Era consultor – fazia team building – quando de repente se viu sem trabalho e sem idade para se relançar na carreira. Mas em vez de sair derrotado decidiu seguir o seu instinto altruísta: “Se eu estou mal, há quem esteja pior. Decidi não trabalhar mais para mim, mas para os outros”. Na sua mente começaram então a fervilhar algumas ideias para acções humanitárias. O Refood foi das últimas a ser pensada, mas a primeira a ser concretizada. “Afinal, a fome tem um maior carácter de urgência”. Foi num almoço com a filha, num buffet de saladas, que a ideia começou a ganhar forma. Ao tomar conhecimento que toda a comida que sobrava ia ter o mesmo destino – o lixo -, a jovem de 18 anos ficou revoltada. “Disse-lhe que isso não acontecia só nos restaurantes em Lisboa, mas nos de todo o mundo. Ela, brava, culpava os empregados do restaurante, ao que respondi que eles não tinham culpa. Afinal não tinham alternativa. E foi aqui que se fez luz, quando referi a palavra alternativa. Pensei: 'Mas eu posso sê-la'. A capacidade de implementá-la estava completamente nas minhas mãos”.

Foi assim que, de bicicleta, começou a pedalar pela zona onde mora, a freguesia de Nossa Senhora de Fátima, nas Avenidas Novas, para propor aos comerciantes da restauração – “os meus parceiros naturais” – que lhe entregassem os desperdícios alimentares para satisfazer os mais carenciados da zona. “De início fui a 45 restaurantes e 30 disseram que sim. Mas não foi fácil, era visto como o estrangeiro maluco, de bicicleta e de chapéu de palha na cabeça, a quem olhavam com alguma desconfiança. Diziam-me quase sempre: 'Não vale a pena, temos muito poucas sobras'. Ao que eu respondia: 'Parabéns, venderam tudo, ainda bem'“, lembra com um sotaque ainda carregado das suas origens. Na igreja de Nossa Senhora de Fátima, onde pediu uma antiga cozinha da paróquia para criar o centro de operações do Refood, também o prior Luís Alberto teve “um pé atrás e outro à frente”. Mas a persistência deu frutos. E o que começou com um voluntário – ele próprio -, ao fim de um mês já tinha 30 voluntários. A engrenagem começava a ficar bem oleada. “Todos os restaurantes têm sobras, comida boa que normalmente vai para o lixo, enquanto a fome urbana aumenta, e muitas vezes envergonhada. Só é preciso que alguém faça a ponte entre quem dá e quem precisa. Começámos por seguir primeiro uma estratégia geográfica – vamos fazer freguesia por freguesia -, mas cedo percebemos que a geografia tem pouco a ver com o voluntariado, este só depende da boa vontade e do empenho das pessoas”.

Primeiro foi o boca a boca para espalhar a semente, depois houve que organizar as equipas de voluntários, definir quem faz o quê. “Na entrevista que faço aos potenciais voluntários, explico-lhes que só precisam de me dar duas horas por semana. E os portugueses têm-se mostrado muito solidários. Só precisavam de alguém que tivesse a iniciativa, que lhes desse a cana para pescar”.

É num quadro afixado numa das paredes do primeiro centro de operações do Refood, num anexo à igreja de Nossa Senhora de Fátima, que estão registados os dados das famílias beneficiárias – “só aqui ajudamos 231 pessoas”: a idade, as preferências de cada um, se têm doenças como a diabetes ou alergias alimentares. Ao lado, define-se quem faz o quê e em que horário. Habitualmente, são os beneficiários que se deslocam ao centro com os tupperwares vazios “e lavados” do dia anterior, para os levarem cheios de volta, com sopa, prato principal, pão, fruta ou bolos. Os sacos que estas famílias levam por volta das 20h30 são preparados desde as 18h pela equipa de voluntários que está no centro, enquanto outra equipa já fez entretanto a ronda pelas pastelarias (para o pão e os bolos) e mais tarde, entre as 22h e as 23h30, outros voluntários fazem a ronda pelos restaurantes para resgatarem a comida que sobrou. Esta fica depois acondicionada e etiquetada no frigorífico para que tudo se repita no dia seguinte. Há também distribuição de comida ao domicílio, para quem não pode deslocar-se ao centro. Aí, entram outros voluntários em acção, a equipa de transporte e distribuição que opera preferencialmente de bicicleta, com cestos à frente e atrás…

O mentor do Re-food com alguns voluntários

Hoje, ao fim de quase quatro anos de trabalho, são mais de mil voluntários, mais de 300 mil refeições entregues, oito núcleos Refood em funcionamento (Nossa Senhora de Fátima, Telheiras, Estrela, Lumiar, Alfragide, Olivais, Foz do Douro, no Porto, e Cascais), mas muitas outras equipas já estão a trabalhar para começar a ajudar as suas comunidades na Grande Lisboa – São Sebastião da Pedreira, Carnide, Belém, Alcântara, Parque das Nações, Misericórdia, Santo António, Santa Clara, São Domingos de Benfica, Benfica, Campo de Ourique, Alvalade, Areeiro, Almada e Rio de Mouro. Fora do distrito de Lisboa, Braga, Covilhã, Alcobaça, Fundão, Leiria, Gaia, Cedofeita, Guarda, Almancil, Algoz, Quarteira, Albufeira ou Faro também estarão operacionais em breve. E até a nível internacional existem equipas em formação em Barcelona, Madrid, Milão, Londres e Buenos Aires, “sendo que a nossa experiência foi também inspiradora para outros projectos”, explica Hunter Halder: em Amesterdão (Buurt Buik) e em várias cidades da Índia (The Robin Hood Army).

Claro que toda esta expansão contou desde o início com vários apoios. Desde logo, o apoio das juntas de Freguesia e igrejas que ajudam a fazer o levantamento das famílias carenciadas. Algumas têm também cedido os espaços para os núcleos do Refood. Depois, os restaurantes e pastelarias, assim como outras empresas que se têm vinculado ao projecto e que têm ajudado com comida ou transporte, como os três carros eléctricos que se irão juntar à frota da Refood. Se o “americano alfacinha”, como se auto-intitula, tinha como primeiro objectivo transformar Lisboa “na primeira cidade sem desperdício alimentar”, hoje a sua ambição é muito maior: passa por deixar a semente do Refood em vários pontos do mundo. Hunter diz que ao fim de quase quatro anos sente-se “cansado, mas com muita alegria”. E considera que os grandes beneficiários do Refood são os próprios voluntários. “Como é bom ajudar os outros… O grande mistério do Refood é só um: por que não foi feito antes?”.

filipa.moroso@sol.pt