Alexandra Lencastre: ‘Fazer as pazes comigo própria não é fácil’

Em 2015, faz 50 anos de vida e 30 de carreira. Passou pelo cinema e pelo teatro, mas recentemente tem-se dedicado sobretudo à televisão. De momento está a gravar a próxima novela da TVI, A Única Mulher, uma produção dividida entre Portugal e Angola. A sua vida fez centenas de manchetes de revistas e jornais…

O que acha que uma mulher de 50 anos, idade que fará em 2015, deveria dizer a uma mulher de 36 anos, como eu?

[longo silêncio] Que se proteja. Que não seja como eu. Que saia de casa com o cabelo molhado porque na minha idade já se vai constipar. Ah! E come chocolates, pequena…

Mas como é que lida com a proximidade dos 50 anos?

Não acho graça nenhuma a ter 50 anos. Quando as pessoas dizem que o tempo passa muito depressa, passa mesmo. É assustador. Começamos a pensar: 'De que é que eu vou morrer? Como é que me vou preparar? A quem é que vou deixar isto?'. Eu comecei a rasgar fotografias e cartas de amor porque, se morrer de repente, não quero que as minhas filhas ou quem quer que seja com a coragem de pegar nas minhas coisas, se vá defrontar com uma intimidade que se calhar vai ser uma grande violência e vai desapontá-los. Já entrei no processo de desaparecer.

Alguma vez se está preparado para esse momento?

Não. Sou católica e esta religião tem esse defeito. Não prepara as pessoas para a morte. Esta passagem nunca é feita com facilidade. Não é uma celebração, como é noutras religiões. A religião católica é mais dura no sentido em que exige uma grande fé. Numa confissão recente pedia ao Frei António, com quem gosto de falar, desculpa pelas minhas dúvidas. E ele disse-me: 'Duvide sempre, a dúvida é humana'. Eu procuro muito o equilíbrio. Há pouco tempo vi o documentário sobre o Carlos do Carmo, que é uma pessoa que admiro muito, e é impressionante ver o equilíbrio daquele homem e a sua coerência. Tinha tanta vontade de ser assim, mas não consigo. 

Sempre disse que vivia mal consigo…

Já me habituei, acho que agora vivo um bocadinho melhor comigo. Mas não é fácil. Não é fácil estar sempre a ver-me ao espelho. E estar sempre a ser vilipendiada. E saber que fui eu que escolhi isso. Fazer as pazes comigo própria não é fácil. E às vezes boicotamo-nos porque temos medo de falhar.

Nesse processo de arrumar a sua vida que referiu, não receia que se possa esquecer de usufruir dos anos que se seguem?

Sim. Mas neste momento há qualquer coisa que me diz que é mais importante arrumar as minhas gavetas. E eu tenho muito pouca confiança em mim a vários níveis, mas há uma coisa na qual confio e que é o meu instinto.

Com 30 anos de carreira, sente que ser actriz é o que faz ou o que é?

A máscara cola-se à pele, como diz Álvaro de Campos. Ao fim de uns tempos já não conseguimos bem diferenciar. Cria-se uma simbiose muito grande. Não sei o que sou. Mas também não estou muito interessada em encontrar essa resposta. O que eu sou é esta manta de retalhos.

E alguma vez levou esses retalhos a um psicólogo?

Tive algumas visitas, em alturas de aflição. Mas o mais regular que tive foi com um psicoterapeuta que me ajudou na pesquisa para a anterior novela e passei a ir lá durante meio ano. Há pouco tempo tive necessidade de falar com ele outra vez.

Porquê?

Porque a minha filha mais velha quis ir para o Conservatório… O medo foi muito grande e senti-me a vacilar.

É-lhe difícil lidar com duas filhas mulheres, a Catarina com 16 e a Margarida com 18 anos, sobretudo quando uma delas está a estudar para ser actriz?

A mais velha ofereceu-me no Natal um livro chamado Crónicas de uma Mãe Desnaturada. Isso é uma provocação de uma mulher. Seria de uma grande hipocrisia dizer que olho para elas como se fossem bebés. Não. Olho para as fotografias delas e vejo os meus bebés, mas olho para elas como duas mulheres: uma ainda meia bebé, a outra meia intelectual, meia rebelde. E olho para elas com respeito e com a noção do desafio. Não é fácil ser mãe. Elas não nascem com um manual e ninguém nos ensina a ser a mãe perfeita. Mas fui abençoada, para uma pessoa com tantas questões de cabeça como eu, algumas delas paralisantes, elas são miúdas normais.

Está ansiosa por ver a estreia da sua filha?

No sentido de ansiedade, sim. Mas no sentido de vontade que aconteça, não. Tenho muito medo por ela. Gostava que ela fosse diferente de mim, que fosse uma actriz mais racional e cautelosa do que eu. Tenho de encarar isto como mãe, não como colega. Às vezes penso em deixar de representar quando ela se estrear…

Nasceu a 26 de Setembro de 1965, no Hospital Militar, em Lisboa, mas esses não eram os planos da sua mãe para esse dia…

Ela ia para um casamento de família… O meu pai, tenente, engalanou-se todo com a farda militar e o meu irmão era o menino das alianças. A minha mãe já estava toda arranjada, mas sentiu-se indisposta e o meu pai foi deixá-la no hospital, convencido que era só uma indisposição. E eu nasci passados 15 minutos. Foi uma coisa muito teatral porque depois do almoço as pessoas do casamento, incluindo a noiva, foram para o hospital. A minha tia Mana, a irmã mais velha da minha avó, que nunca teve filhos e que me ensinou tanta coisa, foi a primeira pessoa a ver-me e dizia que eu era tão feia, tão feia, tão feia… Além disso era menina, o que foi uma desilusão. Eu deveria ter sido o Miguel.

Sentiu na pele essa expectativa de que tivesse nascido rapaz?

Sim. E por isso imitava o meu irmão em tudo. Ele foi o meu primeiro amor. O meu irmão, claro, desprezava-me, mas sempre que precisava de alguém que corresse bem para algum jogo, ia-me buscar. Eu era muito atlética. Cresci a achar que devia ser rapaz. O meu pai cortava-me o cabelo à rapaz porque eu tinha um cabelo muito fininho e ele achava que tinha de o fortalecer. Usava os casacos do meu pai, andava de jeans rotos e de botas alentejanas com protectores. Vestia-me à rapaz. Só furei as orelhas para aí aos 21 anos.

Essa masculinidade não era complicada de gerir tendo em conta que andava numa escola só de meninas?

Comecei por andar na Academia de Música de Santa Cecília, onde aprendi piano. Mas entretanto chamaram os meus pais a dizer que eu tinha talento, mas que não estudava em casa. E os meus pais disseram: 'Nós não temos piano em casa'. Nessa altura saí do piano e um pouco mais tarde saí da Academia e fui, com o meu irmão, para o Algés e Dafundo, que era ao pé de casa, no Restelo. Era uma escola mista, mas eu fiquei num edifício separado que só tinha raparigas. Sofri horrores. Havia oito Alexandras na turma e éramos todas tratadas pelo apelido.

Entretanto como lida com as mudanças no seu corpo, inerentes à adolescência?

Foi complicado. Sempre fui baixinha e era muito magrinha. Fiz dez anos de natação e, mesmo assim, contra todas as expectativas, começaram a crescer-me umas maminhas que chegaram ao 38. Não aceitei bem esse lado. Até porque nunca fui bonita como eu encaro o ser bonita. O meu ideal de beleza tem a ver com ombros pequeninos e redondos, cintura estreita e anca larga, pernas bem torneadas. Tudo o que seja anguloso, para mim, tem a ver com o masculino. E eu era completamente angulosa, mas com duas boobies. Havia qualquer coisa que não jogava certo, sentia-me atarracada dentro deste corpo. E depois, para ajudar, li A Metamorfose, do Kafka. Sentia-me muito perturbada com esta pessoa que existia dentro deste corpo que eu não aceitava.

Não aceitava a sua feminilidade, mas não sentia que havia um desfasamento no sentido em que, quem estava à sua volta, a entendia como um objecto de desejo?

Eu não era nada popular. Nada mesmo.

Não sentia que a desejavam como jovem mulher?

Quando tinha 11 anos apaixonei-me e quando fiz 13 começámos a namorar. O Pedro tinha mais quatro anos que eu. Foi um namoro muito adolescente, de beijinhos, mas eu gostava muito dele. Mas só quando terminámos namoro, já tinha eu 16 anos, é que senti que estava a começar a atrair a atenção dos rapazes.

Foi com ele que iniciou a sua vida sexual?

Não. Foi com o namorado que tive a seguir, com quem namorei cinco anos e estivemos para casar, o Miguel. Foi uma grande paixão. Ele era cinco anos mais velho que eu, já tinha estudado Engenharia e estava em Arquitectura. Era motoqueiro, teve uma Gilera 1000 e um bigodinho enrolado para cima. Foi alguém que me obrigou a sair do meu umbigo e a perceber que era uma mulher. E depois foi a minha primeira grande desilusão com os homens. Pensei que não ia sobreviver. Até que conheci o Virgílio [Castelo]. Quer dizer, já o conhecia. Mas detestava-o. E quando recebi o prémio revelação da Nova Gente pela peça Frei Luís de Sousa, esbarrei-me com ele, que me disse: 'Quer ser a minha namorada à séria?'. Acabei por me apaixonar.

Ao mesmo tempo que trava essa batalha com a sua feminilidade, aproxima-se muito da religião. Chegou a pensar ser freira?

Teve muito a ver com a minha tia Mana, que dava aulas de catequese na igreja de Santa Isabel. Por volta dos nove ou dez anos comecei a questionar muita coisa e numa confissão que fiz lá na igreja, entre outras coisas, o padre aconselhou-me a ler A Vida dos Santos, que não aconselho a ninguém, e disse para eu rezar. E eu comecei a rezar muito. Rezava pelos meus pais, pelo meu irmão, pelo resto da família… Depois rezava por todos aqueles que estavam doentes e acabava a rezar por todo o mundo. E, claro, no meio disto, tinha insónias. E tinha muito medo de morrer. A um ponto que os meus pais me levaram ao médico, que me deu um xarope que me dava muito sono.

Foram todas essas dúvidas que acabaram por encaminhá-la para Filosofia?

Sim. Acreditava piamente que ali ia encontrar respostas. Até que conheci um colega de 55 anos que tinha cinco licenciaturas. Ele tinha estudado coisas como Teologia e Sociologia, e agora estava em Filosofia. E perguntou-me por que estava ali e eu, nos meus 18 anos, disse-lhe que estava à procura da verdade. E ele respondeu-me: 'Eu também'. A partir desse momento houve um mundo que se desmoronou. O que é que eu estava a fazer? Acordava todos os dias e só queria pedir desculpa por existir. Sempre me senti poucochinho. E sempre fui tropeçando em pessoas na minha vida – como o Miguel Esteves Cardoso, o Quevedo, a Graça Lobo – que me levavam a pensar: 'Vou desaparecer porque não tenho lugar neste quadro'. 

Sempre achou que toda a gente era melhor do que a Alexandra?

Toda a gente, não. Mas a maior parte, sim. E continuo sem dúvidas sobre isso.

Como é que o seu pai, militar de carreira, encarou a sua mudança para o Conservatório?

Ficou muito contrariado… O meu pai achava que eu devia ir para Direito e a minha mãe também. Mas eu fui para Filosofia. E eles começaram a achar que eu faria Filosofia e depois Direito, porque Filosofia não dava emprego a ninguém. Mas encontrei um grupo de Psicologia que fazia teatro na Faculdade de Letras e foi aí que tudo começou. O meu pai nunca me perdoou que eu tivesse ido fazer os quatro dias de testes para o Conservatório sem dizer nada a ninguém. E entrei e continuei sem dizer nada.

Como assim?

Continuei inscrita na Faculdade de Letras porque achei que devia ir experimentar as aulas e não queria dizer nada enquanto não tivesse a certeza. Mas o meu pai apanhou-me logo na curva e ficou muito zangado. E quando tive de escolher o meu nome profissional, logo no primeiro ano, o meu pai teve uma conversa comigo e disse que não gostava que eu usasse o Pedrosa, como usava a minha prima Inês. Não voltámos a falar sobre isso. O meu pai sentiu que ser actriz era uma coisa desestruturante para uma pessoa que precisava de ser estruturada porque era frágil e indecisa. Ele queria proteger-me de um mundo que achava que me ia engolir. Mas aceitou e até começou a oferecer-me peças de teatro. É raro dizer-me qualquer coisa que não me ajude. E este Natal até ofereceu à neta uma peça do Harold Pinter.

O que a fez sentir que devia ficar no Conservatório?

Porque encontrei um grupo de 30 malucos iguais a mim, com a mesma energia, as mesmas questões, a mesma sensibilidade. No Conservatório encontrei a minha fuga. 

Apesar desse sentimento de identificação, não foi recebida da mesma forma. Chamavam-na a Estrelinha de Belém?

Sim. Eu vivia no Restelo e no Conservatório praticava-se uma actividade que era o 'bora lá ser diferente'. Eu era uma outsider porque me arranjava, usava um fato de dança jazz todo cor-de-rosa, maquilhava-me e punha perfume. Não era descontraída como os outros, era uma pessoa tensa. Eu sentia-me identificada com o grupo, mas o contrário não acontecia.

E houve uma fase em que essa falta de identificação se tornou insuportável?

Sim, a Águeda Sena, quando acabámos o primeiro semestre, disse-me que eu só estava a investir 16% de mim. E eu fui para a casa de banho e parti um frasco de iogurte que servia de cinzeiro e auto mutilei-me. Sentia que estava ali contra tudo e contra todos e mesmo assim estava a fazer mal. Foi o António Cordeiro, meu colega de curso, que teve uma conversa comigo sobre o que é que eram realmente questões de vida ou de morte. E percebi que a minha questão não era de vida ou de morte, mas de trabalho e de entrega.

Mas quis, de facto, morrer?

Essa coisa do querer morrer persegue-me desde sempre. Mas muitas vezes, o querer morrer é querer parar, é querer descansar. Não é o morrer de nunca mais voltar. É uma infantilidade que tenho. Estava sempre a dizer que desapareço, mato-me, atiro-me ao mar, corto os pulsos. Quero é que olhem para mim. No fundo tenho é que crescer, que é um processo que demora. E que dói. E ninguém aos 19 anos já cresceu. Ainda hoje estou a aprender! Temos de dançar com a vida e com os outros. E essa dança vai a ritmo, a contra-ritmo, pisam-nos os pés, caímos, levantamo-nos…

E, às vezes, só queremos mesmo pousar os pés sobre os pés daquele que está a dançar connosco e deixarmo-nos ir?

É verdade… Como o meu pai fazia comigo quando eu era pequenina…

Quando sentiu que o grupo começou a respeitá-la?

Quando apresentei um trabalho em História de Arte sobre a Casa da Cascata, do Frank Lloyd Wright. Quis estabelecer um paralelo entre essa casa e a sua ligação à natureza com uma peça de teatro. Resultou e, de repente, os professores e os colegas começaram a tratar-me de outra forma. Mas a verdadeira mudança foi quando fiz o Frei Luís de Sousa, com o Jorge Listopad, que na altura era director do Conservatório.

Como é que passa de outsider a escolhida pelo director do Conservatório?

Eu própria fartei-me de perguntar ao Jorge Listopad: 'Ó professor, mas porque é que não escolhe antes esta? Ou aquela?'. Mas a verdade é que antes, no primeiro ano, já tinha feito uma peça do Pasolini, o Pílades, encenada pelo Mário Feliciano, no ACARTE. E apesar de ter tido más críticas, o Listopad achou que eu era a pessoa certa para fazer a Maria. E depois da Maria tinha uma espécie de colo dos professores.

E da crítica também, que ovacionou a peça e a reconheceu com um prémio Revelação.

Sim… É das peças que mais gosto de recordar. Tinha um elenco fantástico, a Carmen Dolores, o Carlos Wallenstein, o Sinde Filipe… Ainda hoje me lembro das minhas movimentações em palco. Havia uma mudança de acto em que tinha um minuto para ir de um lado ao outro do palco, mudar de roupa entretanto, e entrar em cena muito calma. Foi aqui que conheci bem o Listopad, que foi uma pessoa muito importante para mim. Ele permitiu-me evoluir, mesmo espiritualmente, não deixando de ser muito exigente.

O sofrimento de entrar em cena começou logo nessas primeiras experiências ou foi aumentando à medida que as expectativas em relação a si também foram aumentando?

Lembro-me de, no Pílades, vomitar todas as noites antes de entrar em cena. E era a Luísa Cruz que me ajudava a vestir e que me fazia uma massagem. E eu só dizia que não ia, que não queria isto, que não conseguia ter prazer, só medo. Era um sofrimento enorme. Depois, no Frei Luís de Sousa, tive um grande apoio da Carmen Dolores, com quem dividia o camarim. Ela, sendo uma grande actriz, mas ao mesmo tempo uma pessoa tão normal que tinha um marido e um filho e cuidava da casa, transmitia-me uma grande calma. E ria-se muito dos meus dramas.

Como é que se continua? Que fascínio é esse pelo ser actriz?

Porque depois me sinto apaziguada com o mundo. É dos processos mais catárticos que conheço. O Raul Solnado costumava dizer que os aplausos eram afrodisíacos. Já tive casas cheias e sei o que é sentir essa cascata de palmas como se fossem ondas de energia para cima de nós. Mas também fiz muito teatro para duas ou três pessoas e senti a mesma coisa.

Também sente essa angústia no cinema ou na televisão?

É diferente.

Fez dezenas de peças de teatro, mas há cerca de 15 anos parou, esteve 12 anos sem subir a um palco e há três anos voltou, em Um Eléctrico Chamado Desejo, de Tennessee Williams, encenado pelo Diogo Infante. Tem vontade de voltar a fazer teatro ou a angústia levou a melhor?

Nessa peça voltei a sentir o mesmo. Quis desistir todos os dias. Mas depois não há nada que se compare. Actualmente tenho sobretudo vontade de voltar a acreditar em mim, neste ser que agora tem esta idade, este corpo e esta voz. Tenho vontade de perceber como é que, aos 50 anos, me relaciono com uma personagem em palco. E acho que tenho menos medo do que tinha há três anos. Tenho vontade de provar alguma coisa a mim própria. E de me pacificar comigo própria. Nesta lógica, há um projecto pensado com o Diogo do qual ainda não posso falar.

A televisão aparece na sua vida com a Rua Sésamo?

Antes disso houve só uma experiência, um projecto em que actores contavam histórias infantis ao final do dia. Mas a grande aprendizagem foi com a Rua Sésamo, para a qual fui chamada através do Fernando Lopes, que na altura era director de entretenimento da RTP. Eu tinha terminado o Conservatório no ano anterior e sempre tinha dito que não ia fazer televisão, mas a arrogância é uma coisa que se perde e este foi um projecto bom a todos os níveis. Foi um programa que ajudou muita gente a ler e a escrever. Ainda hoje pessoas de todas as idades me falam da Rua Sésamo.

A Rua Sésamo, nomeadamente a sua personagem, agradava aos filhos… Mas também aos pais.

A Guiomar era uma miúda engraçada que servia de mediadora entre as crianças e os adultos. Mas não percebi que tinha um lado apelativo a outros níveis… Mais tarde vieram-me dizer que sim e fiquei muito envergonhada porque não era essa a intenção.

Mas não se metiam consigo?

Houve uma altura em que sim. Mas eu não estava nem aí. Não me sentia sexy. 

Apesar de toda a gente dizer que era? 

Mas se eu não o sentia, até podia vir Jesus Cristo à terra dizer que eu era sexy que eu ia dizer: 'Tá bem, Jesus, ficamos por aqui'.

Mesmo não sentindo, a verdade é que sempre foi vista como uma sex symbol portuguesa. Isso torna ainda mais difícil o passar dos anos? Foi por isso que fez plásticas?

Durante muito tempo falava-se muito nisso e eu não tinha feito nada. Aqui há uns tempos, quando engordei muito, as minhas feições alteraram-se e diziam que tinha feito uma plástica que não tinha corrido bem. Mas não. O que fiz foi uma lipoaspiração, mas achei que não correu bem, acho que estava à espera de um milagre. Mais tarde, na boca, quando começou a ficar mais fina e com o tal código de barras, mas não tive sorte: fiz uma alergia e dois granulomas. Depois, nos olhos, há quatro anos que tenho indicação medica para fazer uma blefaroplastia, que é tirar o excesso de pele da pálpebra. E comecei a fazer massagens, mesoterapia, ginásio e estou sempre em dieta. E tirei o sinal do qual nunca gostei. A verdade é que as pessoas não imaginam a pressão que exercem sobre nós.

Depois da Rua Sésamo nunca mais saiu da televisão?

Fui fazendo sempre televisão. Na altura havia muita produção e, ao mesmo tempo, éramos menos actores. Aprendi muito na televisão, é um formato que muscula muito os actores.

Já está a gravar a próxima novela da TVI, A Única Mulher, que se passa entre Portugal e Angola. O que se pode esperar deste seu regresso às novelas?

Começámos os ensaios em Setembro, ensaiámos muito sobretudo porque há muitos actores do elenco africano com um percurso diferente e isso exigiu um trabalho diferente. E há muitos actores novos, que só têm experiência de cinema ou teatro e outros que vieram da moda. Vamos ter grandes revelações. A Única Mulher é um Romeu e Julieta afastados pela cor da pele, mas que aborda outros temas muito importantes que não apenas o racismo. É um projecto que me parece muito interessante. Agora estou prestes a arrancar para Angola, onde vou filmar uma semana e onde quero absorver muito material para depois utilizar nas cenas que vou gravar cá nos próximos meses.

Passaram cerca de dois anos desde a última novela, Destinos Cruzados. Sentia saudades do ritmo das novelas?

Essa novela ainda está muito presente para mim. Estive um ano e tal a fazer duas personagens, a Sílvia e a Laura. Como dizia o produtor da novela, eu trabalhava em média sete dias por semana, 15 horas por dia. Além disto passava dias muito sozinha a contracenar comigo própria, que foi das experiências mais duras que já tive. Quando acabei disse: durante anos não quero fazer novelas!

Tendo em conta que é uma actriz exclusiva da TVI, como é que um desejo desses é negociado com a estação?

A estação tem muita noção do desgaste das pessoas. Um actor não é uma máquina. Até as câmaras precisam de descansar. Quando temos uma câmara a funcionar muitas horas, ela sobreaquece. Quando acabei esta novela senti que estava seca, que não tinha nada para dar. Tinha passado por tantos registos emocionais, como é que ia surpreender o público a seguir? Foi tudo muito conversado com a TVI. Neste momento, por exemplo, não queria fazer esta personagem. Mas não é por não gostar da personagem, estou é preocupada em inovar dentro de um registo que já experimentei.

Isso é ainda mais difícil porque esta Pilar é uma vilã e a Alexandra tem no currículo uma das mais marcantes vilãs de novela nacional, a Luísa Albuquerque de Ninguém Como Tu?

Não estava à espera disso. Mesmo durante as gravações não tive essa noção, só depois é que fui ganhando essa noção. Foi a primeira antagonista que teve o carinho do público. Isto já foi há dez anos, mas toda a gente quer fugir desse fantasma da Luísa Albuquerque. Mas há algo que é logo diferente: a Luísa tinha um poder de sedução muito grande e aqui não existe isso, o que me deixa muito satisfeita. É uma zona que, aos 50 anos, já não faz sentido estar a trabalhar. Esta Pilar não tem vida sentimental e essa zona árida é por onde estou a trabalhar.

Nestes anos em que esteve afastada das novelas, acabou a fazer outros projectos. Como é que a Alexandra Lencastre vai parar ao lugar de apresentadora do Diário da Casa dos Segredos?

Quando visto uma camisola, visto-a mesmo. E quando me pedem: 'Alexandra, precisamos de si aqui, nestas funções', eu estou lá. Além disto, sou muito curiosa, e ao contrário do que dizem, a curiosidade ainda não matou o gato. Acho que me posso permitir a isto. Eu não era espectadora daquele programa, fui para perceber quem eram aquelas pessoas, quais eram os seus percursos, o que estavam ali a fazer, o que pretendem atingir e o que é que faz à alma de cada pessoa estar ali naquele iglô claustrofóbico.

Não sentiu receio do que é que isso podia fazer à credibilidade?

Claro que sim! Ao longo de 30 anos de carreira, que faço em 2015, arrisquei bastante e dei vários trambolhões, mas que me foram ensinando. O actor tem uma exposição tão grande que quase parece napalm. Às vezes é tão abrasivo que pensamos que nunca vamos recuperar. Mas depois, noutra personagem mais à frente, vamos buscar a dor dessa queimadura que nos deixou sem pele, e isto torna-se quase viciante. Fui muito criticada por fazer determinadas coisas, como quando fiz o Cabaret com o La Féria, ou o Na Cama Com, e depois fazer filmes com o Fernando Lopes e com o João Botelho… Mas ainda bem que as coisas têm sido assim, porque a minha experiência tem sido rica e diversa. Uma das coisas que me preocupou desde jovem foi não ser samba de uma nota só. Há actores que se refugiam em determinado tipo no qual são geniais e não querem arriscar. Eu valorizo essas pessoas, se calhar são mais equilibradas e coerentes do que eu, não são tão criticadas e a sua vida é menos tumultuosa… Mas também não passaram por altos e baixos que fazem de nós pessoas melhores.

Também neste período em que não fez novelas, participou nos júris de dois programas, A Tua Cara Não Me é Estranha e Dança Com as Estrelas, onde mostrou um lado muito brincalhão e foi duramente criticada pelo seu comportamento…

Sempre senti que fiz coisas que muita gente acha que eu não tinha o direito de fazer e fui sempre criticada por isso. Paguei sempre uma factura.

Se outras actrizes fazem determinadas coisas é divertido, se for a Alexandra é porque não é boa da cabeça?

Sinto que as coisas não me são facilmente perdoadas e a outras pessoas, sim. Há pouco tempo reencontrei o Luís Miguel Cintra, o John Malkovich e o Paulo Branco, no Estoril Film Festival, onde foi exibido um filme que fiz com o Malkovich há uma data de anos e recordei-me que o Luís Miguel Cintra sempre me tentou chamar a atenção, através de amigos comuns, para não fazer determinadas coisas e para não me expor tanto, que estava a envergonhar uma geração. Até que nos conhecemos nesse filme e acho que consegui fazer com que ele me percebesse e ficámos a dar-nos bem. No outro dia, falando com o Diogo Infante, ele também me dizia: 'Alexandra, se calhar abriste uma porta que não devias ter aberto'.

Esse abrir de porta e a relação com a imprensa que nasceu daí, permitiu que a vilipendiassem, como disse no início desta entrevista?

Sim, evidentemente. Perguntam-me muitas vezes como é que começou esta bola de neve de exposição… Aconteceu de forma muito natural e numa altura em que a imprensa funcionava de forma diferente e nem havia paparazzi. Lembro-me que havia um programa na SIC, o Mundo VIP, apresentado pelo Paulo Pires e pela Filipa Garnel, e em que a Margarida Pinto Correia, com quem um ano antes eu tinha feito o Frou Frou, fazia reportagens de exteriores que, entre outras coisas, incluíam visitar as casas das pessoas. Eu tinha tido um bebé e eles queriam ver como era o quarto do bebé. Vindo da parte da Margarida, achei que não devia recusar. Mas de repente percebo… O que é que eu fui fazer? A partir dali já não podia recusar nada. E aí sim, começa a bola de neve. E depois, como eu tenho este problema enorme que é ter imensa dificuldade em dizer que não, e ter esta necessidade de harmonia e de não ser mal interpretada, sacrifiquei certos valores e princípios em função de ter uma boa imprensa. Essa porta que abri com a maior das boas vontades trouxe coisas boas, mas também coisas negativas. E a responsabilidade obviamente é minha. Mas se trabalho com as emoções e tenho de estar sempre tão disponível, como é possível depois gerir as coisas de uma forma objectiva, pragmática e assertiva? Sou actriz, como podem esperar que tenha coerência?

Qual foi o pior momento?

Foi na altura do meu divórcio com o Piet Hein. Estamos no século XXI e ainda é uma grande injustiça que se comete: uma mulher sozinha não tem desculpa. Uma mulher casada, se está a olhar para o infinito, é porque está pensativa, segura e serena;  uma mulher casada, a rir à gargalhada,  está alegre e reflecte a felicidade do casal; se chora é de alegria e tem ali o companheiro para partilhar. Se uma mulher está sozinha e olha para o infinito, é porque está deprimida; se chora, é porque está de rastos; e se ri à gargalhada, é porque, no mínimo, é alcoólica.

Se se sentia assim tão perseguida por que não bateu com a porta?

Tentei várias vezes. Por exemplo, esse trabalho foi feito de uma forma muito séria pelo Tó Romano, durante os quatro anos em que estive agenciada pela Central Models. Mas fomos vencidos. O próprio Tó não compreendeu o que se estava a passar. Houve várias alturas em que pensei: 'Não aguento mais, vou desistir, vou para o litoral alentejano dar aulas'. Senti as pessoas a olharem para mim com pena. Houve uma altura em que todos os dias estava um paparazzo à porta de minha casa. Mas acho que finalmente acreditaram que eu, se voltar a ter alguém na minha vida, o vou apresentar às pessoas. Não vou ter nada a esconder. As coisas começaram a acalmar, também com a ajuda das minhas actuais agentes, a Rita Carrelo e a Cila do Carmo.

Tem saudades de fazer cinema?

Tenho, muitas. Agora fiz uma pequena colaboração com o Leonel Vieira, no Leão da Estrela, e adorei. O elenco era fantástico, com o Miguel Guilherme e o José Raposo. Mas tenho vontade de fazer uma longa com calma.
Como as que fez com o Fernando Lopes. Tem saudades dele?
[silêncio] Tenho… Para mim ele era como Deus e o Diabo. Era um homem que me absolvia e que me compreendia. Tivemos uma relação de amor não profano. Fiquei tão aliviada por haver alguém como o Fernando que me escolhesse como actriz. Quando ele me convidou para fazer O Delfim demorei uns três meses a acreditar…

Olhando para os seus 30 anos de carreira, Na Cama Com foi o projecto menos convencional e que lhe trouxe mais problemas?

Exactamente. Foi um projecto que me pareceu engraçadíssimo, baseado num formato inglês, ainda mais por ir trabalhar com uma realizadora, a Joana Pontes, que para mim era uma referência. A primeira coisa que me chocou foi o cenário do Tomás Taveira, cheio de cetim e com a Marylin Monroe. Apesar de ter tido convidados fantásticos, como o Raul Solnado e o Prado Coelho, muitos portugueses acreditavam que eu ia mesmo para a cama com aquelas pessoas e fui açoitada pelo país. Estive sem sair à rua durante muito tempo. Ia gravar e fechava-me em casa. As pessoas eram agressivas, perguntavam-me se eu não tinha vergonha, que eram homens casados! Quis desistir, mas tinha assinado um contrato. Hoje em dia dizem-me muitas vezes 'Que giro que era o Na Cama Com'. O tempo absolve.

É cada vez menos vista em eventos sociais e sempre disse que é uma pessoa caseira. Cada vez gosta mais de estar em casa?

Sim. Gosto de estar em casa e de tratar da minha casa, para mim é terapêutico. Ao tratar da minha casa estou a tratar de mim e dos meus. N'A Espuma dos Dias, do Boris Vian, um livro que revisito muitas vezes, há um processo muito interessante para demonstrar o estado de alma das personagens e que tem a ver com a transformação da casa que começa esplendorosa e vai diminuindo e ficando mais escura. Olho para a minha casa assim: se vejo um canto com bolor, vou imediatamente limpar porque não quero que aquilo entre na minha vida.

A ideia da Alexandra Lencastre a limpar obsessivamente a casa tem tudo a ver com a imagem da sex symbol que habita o imaginário de tantos portugueses…

Pois… [risos] Imaginem: eu, de galochas e pijama, a estender roupa no jardim de casa…

Que lugar ocupam hoje os homens na sua vida?

São o inimigo. Por muito que diga que tenho muitos amigos homens, e tenho, dou-me mesmo bem é com mulheres. Os homens tornam-me insegura. E estou cansada de fazer um esforço para tentar corresponder ao que esperam de mim. Mas continuo a ser uma romântica, só que hoje em dia sou mais casamenteira para os outros. O meu corpo desistiu. Mas sem mágoa nenhuma. Claro que, se estivesse com uma pessoa ao meu lado, estaria muito melhor. Não digo o contrário. Mas neste aspecto acho que estou muito bem resolvida.

Finalmente aprendeu a viver sozinha?

Um bocadinho. Houve uma altura em que tentei sempre esconder-me atrás de alguém. Agora ganhei coragem de ir pôr o Euromilhões sem ter necessidade de olhar para o lado a ver se vem alguém. Não vem ninguém. 

raquel.carrilho@sol.pt