CTRL+ALT+DEL

Numa loja, pela altura do Natal, duas senhoras cobertas de ouros e peles, conversam enquanto pagam presentes na secção de criança.

-Pronto, tudo giríssimo. Peça lá as etiquetas para não confundir os meninos e vamos embora… Não é?
-Não! Ainda tenho de ir à lingerie comprar as cuecas azuis para a passagem d'ano.
-Oh! Disparate! Você faz isso? (Na pausa a outra senhora encolhe os ombros como que a explicar que sim. Recompõe-se e continua.) Bem, mas ainda faltam quinze dias!
-Para o dia de S. VISA só faltam cinco! E depois disto eu sei lá como é que fica a conta! E nem é isso! E se depois não há cuecas azuis? Olhe que p'ró ano bem que precisamos de sorte, Crida! E não é pouca! Já que aqui estamos, devia levar umas para si também!

Retirada a maquilhagem, as purpurinas, as fitinhas e todos os enfeites que eventualmente serão removidos no final da festa, a passagem de ano tem a mesma espectacularidade que o 'Voltei Voltei' do Dino Meira: «Ainda ontem estava em 2014 e agora já estou em 2015».

Mudar de ano é uma coisa de calendário, simples e esquecível; não é um ritual de passagem, não conta com nenhuma espécie de dificuldade e a única prova que requer ao ser humano é a sua capacidade de beber um copo de champanhe e tragar doze passas com umas cuecas azuis vestidas. É muito simples.
Da mesma forma que no fundo sabemos que o ano novo não tem a capacidade de renovar a humanidade, saciar os estômagos de todo o planeta, de lhe exterminar os conflitos, acabar com as guerras, impor a paz, a harmonia e a igualdade, sabemos que isso não nos irá acontecer, por sermos uma parte dessa mesma humanidade. Trata-se de uma sucessão cumulativa de anos. 

Uns pisos mais abaixo, na secção da tecnologia em frente às consolas e videojogos, dois rapazes nos vinte e poucos testam o jogo que está disponível na consola de exposição: 
-Hoje é o último dia para confirmar a passagem d'ano. Já confirmaste? Vais? É o mesmo que no ano passado, são os mesmos que estão a organizar, mas é mais gente. Se calhar é preciso alugar duas casas! 
-Pá, não sei se vou.
-'Tás parvo?
-Eu não gosto muito e no ano passado não me diverti, acho que prefiro ficar em casa.
-Com o GT5? 
Silêncio longo mas indiferente. – Eh pá, SIM. 
-Vai lá estar a Tânia…
-Também lá estava no ano passado e não correu lá muito bem, tipo…
-Mais uma razão para vires este ano. Vá lá, são cinquenta euros e é a Tânia.
-Pá, no ano passado ficámos lá a falar e depois ficámos sozinhos e as coisas ficaram muita fora, não a vi o ano todo e acho que não quero voltar a vê-la… E ela deve lembrar-se do ano passado, por isso, se é para me convencer, tchau – a Tânia é mais uma razão para eu não ir.
-Devia ser ao contrário.
-Pá, mas não é! As cenas acumulam, percebes? A Tânia, tudo, sabes? 'Tou um ano inteiro a tentar esquecer-me e pronto! – [palavrão] Lá vens tu com essas cenas. Isto não é só fazer CTRL+ALT+DEL, [palavrão]! – os anos não apagam as merdas! 

Pois não.

Se ao menos fosse possível reprovar o ano, rever a matéria dada e transitar para o próximo, já com os novos conhecimentos devidamente adquiridos… Mas não. Por cada ano que inevitavelmente passa, acrescem-lhe as pontas soltas dos anos anteriores, e os anos novos não são mais do que o somatório de todos os plafonds de VISA estoirados, de todas as cartas das finanças deixadas por abrir, de todos os doces para sempre acumulados nas ancas que ainda estão à espera do primeiro dia de ginásio… De todas as Tânias que não soubemos domar. 

joanabarrios.com