Eu sou Charlie

O grande problema no confronto de civilizações, como assinalaram os que estudaram mais teoricamente o assunto, é a enorme divergência de conceitos e linguagem que separa as grandes culturas – ou, mesmo dentro de culturas semelhantes, que separa as linguagens.

Penso ter sido a Felipe González que ouvi, na 1ª Guerra do Golfo, esta observação sensata: quando Sadam estava a vociferar cobras e lagartos contra os EUA e o Ocidente, ameaçando com a mãe de todas as guerras, queria apenas significar estar disposto a entrar um dia numa Guerra, que ele esperava longínqua; ao passo que, nessa altura, quando Bush pai afirmava contidamente estar a pensar numa acção militar contra o Iraque, já os aviões carregados de bombas iam no ar, a caminho do Golfo. Era realmente difícil um entendimento, com esta divergência de linguagens e comportamentos.

Hoje, já se viu que os radicais islâmicos estão mesmo interessados em que a imprensa do Mundo que consideram seu inimigo passe os seus comunicados mais extremistas, e a degolação de pobres inocentes. Pode ser que a nós também nos interesse isso, para alimentar um ódio ao comportamento deles. Mas defendo que a imprensa ocidental deve ter o cuidado de não passar os comunicados dos extremistas, nem alinhar nas suas vontades.

A informação não é um produto qualquer. Não são parafusos que se vendem. Já vimos que os mais importantes meios de comunicação do mundo, em países ocidentais de grande tradição democrática, sempre estiveram dispostos a pactuar com as autoridades, em casos extremos, a omissão de certo tipo de informações. Neste caso isso explica-se.

Claro que teria de ser uma coisa muito ponderada, quer pelos representantes dos jornalistas, quer pelas autoridades. Porque também já se viu que um dos objectivos primordiais dos radicais é acabar com a liberdade de imprensa.

Por mim, preferia ver calados os seus comunicados, ou noticiados apenas dentro de um enquadramento jornalístico ocidental e democrático.

De resto, fiquei satisfeito por ver que a imprensa e o Mundo se recusaram a sucumbir ao medo dos radicais loucos. Gostei de ver os principais jornais internacionais reproduzirem os cartoons que tanto irritam os radicais, como gostei de saber que o Charlie Hebdo (independentemente do que nele me agrada ou não, o que não vem agora aqui ao caso) volta a sair na próxima semana, aproveitando mais uma vez as instalações que o Libération lhe cede.

De resto, a nossa sorte é estes radicais extremistas serem demasiadamente estúpidos, baseando-se apenas na força bruta e no terror. É isso que nos garante nunca virem eles a alcançarem a vitória, unidos num suposto califado medieval, ou dispersos por aí. Claro que qualquer Deus, Alá ou Profeta que andem por algum Paraíso os desprezam tanto como o resto do Mundo (como mostram até as reacções dos muçulmanos da Liga Árabe ou de outras organizações de menor âmbito). Nunca chegarão a Paraíso nenhum, mas apenas a algum Inferno, onde se tiverem direito a uma virgem será tão horrível como eles, daquelas em que ninguém quis nunca pegar, e só lá estará para lhes fazer tudo ainda mais negro.

Eu sou Charlie. Como espero que sejamos praticamente todos (porque se há casos em que a originalidade não faz falta nenhuma, este é um deles).