A brusca erupção, no Verão passado, do chamado Estado Islâmico veio repor muitas destas interrogações. A organização chefiada por Abu Bakr al-Baghdadi, que se autoproclama califa do novo califado, demonstra a vocação globalizante de um movimento que pretende desligar-se dos limites da significativa territorialidade entretanto alcançada e investir-se da dignidade de califado, tradicionalmente, a organização política de cúpula da comunidade dos crentes.
Não se trata apenas de megalomania. Trata-se de usar um mito poderoso para uma comunidade histórica, cultural e religiosa que se sente marginalizada e oprimida há quase um século, indo buscar o símbolo de um tempo de grandeza político-militar e de esplendor cultural e social, o tempo dos califas de Bagdade, de Damasco ou dos sultões otomanos.
Respondendo a várias associações islâmicas, que vieram denunciar o perigo de associar o Islão-religião ao que, para eles, era um bando de terroristas e assassinos, o ministro dos Estrangeiros francês, Laurent Fabius, declarou na Assembleia Nacional que era contra a expressão 'Estado Islâmico', por poder confundir-se com o Islão, os islamistas com os muçulmanos. O presidente Obama veio também rejeitar oficialmente a designação, afirmando: “É necessário que duas coisas fiquem claras: o ISIL (Estado Islâmico do Iraque e do Levante) não é islâmico. Nenhuma religião provocaria a morte de inocentes, e a maior parte das vítimas do ISIL é muçulmana. O ISIL não é, com certeza, um Estado. Era, anteriormente, o ramo da al-Qaeda no Iraque”.
De facto, a maior parte dos atentados radicais integristas deram-se contra muçulmanos e em países islâmicos e árabes. Recorro a um estudo do ICSR (International Centre for the Study of Radicalization and State Violence) relativo a Novembro de 2014 citado pelo Guardian. Na lista de países atingidos, não há nenhum europeu ou americano e apenas dois são de maioria cristã; das 5000 vítimas, 1770 são do Iraque e 786 da Nigéria (Boko Haram) e do Afeganistão. Seguem-se, com mais de 100 vítimas, a Síria, o Iémen, a Somália e o Paquistão; as Filipinas e o Quénia, de maioria cristã, fecham o rol das vítimas, com 50 mortos cada.
Estes números devem fazer pensar os que falam em 'guerra de religião' a propósito do que é mais uma onda de terrorismo que, sob pretexto religioso, se lança ao assalto do poder político. É também tempo de pensar que esta imputação à 'religião' da violência não é inocente e que os regimes mais sanguinários do século XX eram 'laicos e republicanos'.