Être ou ne pas être #Charlie

Seria impossível passar ao lado deste tema, que está na ordem do nó que trago no estômago desde que sucedeu: o massacre na redacção do jornal Charlie Hebdo, em Paris, na passada quarta-feira, 7 de Janeiro de 2015.   

 

De tudo o que já foi dito, escrito, opinado e noticiado pelas entidades nas quais se deposita a confiança dos espectadores, sabemos que a barbárie é condenável enquanto acto quer efectivo, quer simbólico. Sabemos que o atentado terrorista foi mais do que uma brutalidade contra o Ocidente. E sabemos que têm de ser tomadas medidas e ser dadas respostas claras para travar possíveis próximas vezes. Mas também sabemos que é tão essencial combater o medo, como é combater a ignorância e a intolerância.

Também sabemos ainda que os acontecimentos são hoje comentados nas mesas de café em que se tornaram as redes sociais com todos os seus inconvenientes (porque por escrito, tudo fica registado para a posteridade) e que estas são, mais do que os olhos, o espelho da alma dos emissores de todo o tipo de comentários e opiniões. 

Ouvi muitas conversas de mesas alheias, que é como quem diz que fiquei a saber que muitas das pessoas que fazem parte do meu universo meta-social estão baralhadas: tolhidas pelo horror, decidiram expressar-se fervorosamente e condenar o massacre, mas passadas umas horas e sabidos alguns factos passaram a não saber bem o que achar. Um bocadinho depois de terem pensado por si próprias e desenvolvido uma opinião que afinal era um pouco reaccionária, estavam completamente perdidas em tanto thread e linhas de pensamento, para não saberem finalmente, quais Hamlets, se são ou não #charlie. 

Muitas dessas pessoas não perceberam que ser #charlie não passa por adorar a publicação, ter muita pena das vítimas ou concordar piamente com o seu conteúdo; ser #charlie é tão simplesmente defender a liberdade que permite a diversidade que, por sua vez, permite a riqueza dos países da Europa, o melting pot. Segundo os que do choro passaram à reacção, o Velho Continente afinal é imperialista e colonialista e não respeita as crenças alheias e tem de ser castigado, tem de expulsar os imigrantes, mas manter a sua precária natalidade, reafirmar os seus valores e, acima de tudo, tem de se repensar o espaço Schengen, que é o eufemismo para 'é necessário fechar as fronteiras da Europa'. 

São tantas as contradições e afirmações bacocas que acreditei, de uma vez, que o problema se estende para lá da iliteracia generalizada e da crise de valores morais. As falinhas mansas das ideologias xenófobas de direita dragam de volta o terreno que tanto trabalho deu a conquistar em alturas como a que vivemos (de profunda crise), e estão cada vez mais enraizadas nos que povoam o nosso quotidiano. A posta em prática das ditaduras invisíveis, que é o racismo encapotado, a xenofobia e a exclusão social, por exemplo, não são mais do que a consubstanciação do medo generalizado, precisamente aquilo que o terrorismo deseja que se instale. Sendo que o pior é que quem pratica este tipo de acções não entende que se deixou dominar por aquilo que julga estar a combater. Dizer que deviam voltar lá para a terra deles e coisas do género não irá salvar ninguém. Fechar a porta não é a solução. 

É como quando andamos na escola e há um puto maior que nós, que decide implicar e chamar nomes, esconde a mochila no caixote do lixo, atira o lanche para o chão e põe-lhe o pé em cima, risca o desenho na aula e vai à casa de banho abrir a porta quando estamos a fazer chichi. É como quando temos medo de cães e eles sentem que temos medo e ainda se aproximam mais. O momento não está para contracções.
A liberdade é um dos princípios pelos quais a Europa se rege. Mas será que se tem ensinado a liberdade? Que se tem praticado a liberdade? Que se tem vivido activamente a liberdade? A Europa precisa novamente da participação dos seus cidadãos.

E o meu nó é por causa disto: 'je suis Charlie' rodeada de gente que não sabe se 'est Charlie ou non', porque não sabe 'rien', porque se demitiu da cidadania activa e só se lembra de a exercer nas redes sociais, de quando em vez, mas que se esquece logo no dia seguinte. 

trashedia.com