Manuel, então com 26 anos, embarcou no porto venezuelano de La Guaira. Tinha a intenção de visitar a família na Madeira, depois de três anos no país de Simón Bolívar onde trabalhou como empregado, num bar. Longe de saber que, também em La Guaira, 20 operacionais do Directório Revolucionário Ibérico de Libertação (DRIL) se dissimularam entre os 600 passageiros. Ao quais se juntaram, no dia seguinte, em Curaçao, os restantes 4 membros do comando operacional. A bordo uma tripulação de 350 indivíduos capitaneada pelo comandante Mário Simões Maia. “Foi um homem excepcional. Lembro-me de Henrique Galvão ter-lhe retirado a divisas e da forma como, já no centro português, em Recife, foi levantado em braços pela tripulação. Prova de que era muito querido”, revela Manuel Perregil.
A história
O ‘Santa Maria’, da Companhia Nacional de Navegação, transportava cerca de mil pessoas depois de deixar Caracas, na Venezuela, rumo a Miami, quando foi tomado de assalto em águas internacionais, nas Caraíbas (algures entre a Martinica e a ilha de Santa Lucia), por 24 rebeldes comandados por Henrique Galvão, na madrugada de 22 de Janeiro de 1961.
“Estivemos o dia no Curaçao e, nessa noite, foi quando eles fizeram isso”, explicou Manuel Perregil. Ele que viria apenas visitar a família na Madeira mas que acabou por já não regressar à Venezuela. Na ilha, dedicou-se nos últimos 52 anos à actividade de taxista no concelho da Calheta. No ano passado reformou-se e passou a licença.
Henrique Galvão era um dissidente do regime de Salazar. Encontrava-se exilado na Venezuela, após uma singular fuga do Hospital de Santa Maria, em Lisboa, em 1959, onde se encontrava detido à guarda da PIDE. Procurou refúgio na embaixada da Argentina e depois exilou-se na Venezuela.
O plano da primeira iniciativa conjunta do DRIL, congeminada pelo capitão Henrique Galvão (delegado plenipotenciário do general Humberto Delgado), consistiria no desvio de um navio para ocupação da ilha espanhola de Fernando Pó, no golfo da Guiné, de onde se partiria para Angola, rastilho de um levantamento insurreccional contra as ditaduras ibéricas.
“Uns diziam que se ia para Cuba outros para África”, explicou Manuel Perregil nas escadarias no cais do Funchal, onde embarcou há 56 anos.
O único morto
“De manhã [do dia 22 de Janeiro de 1961], quando me levantei, vim para o convés mais dois rapazes e vejo um tipo com uma espingarda na escada entre o 2.º e o 3.º deck. Disse ‘não podem subir!’. A primeira ideia que me veio à cabeça foi que tinha havido zaragata na noite anterior”, descreveu.
Afinal tinha sido o início da operação Dulcineia. “Henrique Galvão mandou o comandante Maia tirar os galões e a barreta. Era um homem bem parecido. Depois mandou apagar, com tinta, a inscrição ‘Santa Maria’ e, em cima, mandou escrever ‘Santa Liberdade’. Achei um piadão”, revelou.
Na tomada do navio registou-se um único incidente, uma troca de tiros na ponte, resultando na morte de um oficial e no ferimento grave de um outro. Manuel Perregil considera que mesmo a morte desse “inocente” poderia ter sido evitada.
Depois de ter sido tomado por Galvão, o navio passou a autodenominar-se ‘Santa Liberdade’, ostentando tal denominação, em diferentes partes do convés. Além disso, o paquete conseguiu fintar a marinha e a aviação americanas, tendo navegado incógnito, durante milhas, em pleno oceano Atlântico, com rota orientada para África.
A acção denominava-se ‘Dulcineia’ e fora desencadeada pela DRIL, organização que integrava exilados portugueses e espanhóis, associada ao movimento de Humberto Delgado. Criada na Venezuela, em Janeiro de 1960, a DRIL congregava exilados da União dos Combatentes Espanhóis, pelo lado espanhol, e do Movimento Nacional Independente, delgadista, pelo lado português.
O voo rasante
As coisas começaram a complicar-se quando o navio foi avistado por um cargueiro dinamarquês, que avisou a guarda costeira americana. Daí até à chegada dos navios de guerra foi um ápice. A esquadra aeronaval dos EUA localizou o ‘Santa Maria’ cinco dias após a aventura começar.
“Um dia, quando o sol se punha, estava eu com dois rapazes no convés de 3.º [classe]. Os dias eram passados a olhar para o mar. De repente vi, ao longe, uma luz vermelha a acender a apagar. Pensei logo que seria alguém que andava à nossa procura. Era um helicóptero da Força Aérea dos EUA. Reconheci a bandeira. Passou uma primeira vez numa volta larga por cima de nós. Depois uma volta mais cerca e a terceira volta abaixo da chaminé do barco. A gente até se arrepiou [com a razia]. Disse para os rapazes: ‘estamos salvos!’”, descreveu.
O desembarque humanitário de feridos, no dia 23, na ilha de Santa Lucia denunciou a presença do navio. “No outro dia de manhã, vejo aparecer um barco de guerra americano. Eles comunicaram com o Galvão e este comunicou aos tripulantes e passageiros pelo rádio do barco –como fazia todos os dias há hora do café da manhã, 9 horas- que, nesse dia, se aproximaria do ‘Santa Maria’ um navio de guerra norte-americano. Depois um oficial da marinha americana iria descer do helicóptero. Henrique Galvão tranquilizou os passageiros e tripulantes que os americanos não iriam fazer mal à gente”, contou.
Das comunicações matinais de Henrique Galvão, Manuel Perregil recorda-se de uma de que gostou. Tratou-se da alusão às ex-colónias portuguesas e dos sacrifícios que era, então impostos, à mocidade, arrebanhada que era para a tropa no Ultramar. “Gostei de o ouvir falar. Pensei para comigo, ‘este homem está falando verdade’”, confidenciou.
O desembarque em Recife
De 27 a 31 de Janeiro decorrem negociações entre o comando rebelde e representantes de J. Kennedy –recém empossado- para o desembarque dos passageiros, muitos deles norte-americanos.
O navio permaneceu ao largo do Recife, em águas internacionais, enquanto não cessou funções Kubitchek de Oliveira presidente brasileiro desfavorável às pretensões dos insurrectos.
Vendo que tudo estava perdido, Henrique Galvão havia decidido rumar ao Recife, em vez de atravessar o Atlântico rumo a África e render-se às autoridades brasileiras, pedindo asilo político, que foi aceite.
“Começamos a avistar Pernambuco. Ficamos ao largo. Na altura a maré estava seca. Não tinha fundura suficiente para o ‘Santa Maria’ se aproximar mais do porto de Recife. Começamos a sair. Primeiro os mais velhos e as mulheres. O último foi o capitão do barco. As lanchas que nos trouxeram para terra era brasileiras”, garantiu.
O comando operacional recebera assessoria jurídica do embaixador Álvaro Lins e a promessa do futuro presidente do Brasil, Jânio Quadros, de apoio político. Só a 1 de Fevereiro, após o empossamento deste, se encetam conversações com os representantes brasileiros.
A 2 de Fevereiro dá-se o desembarque de passageiros e tripulação. O dia seguinte culmina com a adesão dos activistas a um acordo com as autoridades brasileiras para a entrega do navio ao Brasil em troca de asilo político. No centro português, em Recife, “fomos todos bem recebidos num salão enorme, com comida e tudo”, descreveu Manuel Perregil.
Humberto Delgado, exilado no Brasil, visitou o navio e mantém uma longa conversa com Henrique Galvão. Há 14 meses que não se viam.
O carácter surpreendente do fenómeno deu-lhe forte impacte mediático, aumentando extraordinariamente a sua repercussão internacional.
Em termos jornalísticos, o caso mobilizou meios nunca utilizados até aquela altura, como foi o uso de pára-quedas por jornalistas do ‘Paris-Match’.
Manuel Perregil e os demais passageiros haviam de rumar à Madeira já no navio ‘Vera Cruz’ que fazia as viagens para o Brasil e que, naquela altura, estava no Rio de Janeiro.