O lixo do aterro ficou todo do outro lado do Atlântico e, em palco, transformou-se em pilhas e pilhas de roupa dispostas de forma caótica por todo o espaço. Ou seja, esta lixeira coreografada não é a céu aberto nem tem mau cheiro. “Tentámos criar o cenário com diferentes materiais e a roupa foi a melhor surpresa, afectou mesmo os movimentos. E, tal como o lixo, é uma pilha de histórias: usámos o stock de guarda-roupa da companhia e muitas vezes é interessante para os bailarinos encontrarem de repente roupas que usaram em actuações anteriores”, explicou ao SOL o coreógrafo belga Alain Platel.
Mas lixo é lixo em todo o lado do mundo, e aqui só importa saber que este lixo simbólico vem do Rio de Janeiro porque Tauberbach tem uma referência com nome próprio: Estamira. Uma das bailarinas do les ballets C de la B é brasileira e ofereceu ao coreógrafo, em 2002, um DVD com o documentário de Marcos Prado que conta a história de Estamira (e que lhe é homónimo), uma mulher esquizofrénica que vive por vontade própria no referido aterro. “Adorei, vi-o muitas vezes mas nunca tive a certeza de o querer usar de forma directa. Ainda assim, acompanhou-me em muitas produções, mostrei-o muitas vezes aos meus bailarinos”.
O que mudou a abordagem foi a entrada em cena da actriz Elsie de Braw, uma antiga conhecida que mostrou a Platel uma grande vontade de entrar num dos seus espectáculos. “Entreguei-lhe o documentário e ela arranjou uma maneira de transformar a personagem e as suas palavras para entrar mesmo na performance”.
E claro que Estamira não foi o primeiro documentário ou ficção a apresentar a vida de pessoas que vivem em lixeiras. O próprio Alain Platel já tinha visto vários, já se interessava pelo tema. Mas é a personalidade desta mulher que faz a diferença e que dá todo o tom à criação: “Ela diz que não tem alternativa porque só consegue existir no mundo real. É muito corajoso isso, esse confronto com o que ela acredita ser a única coisa real. Naquele ambiente tão sujo ela mantém-se sempre muito nobre. É uma verdadeira filósofa que tem muito a dizer sobre o mundo, e isso é muito mais importante do que a questão da pobreza”.
Corpos torcidos e sofridos
Enquanto Elsie encarna a personagem, enquanto ela fala e responde a si própria numa voz off distorcida que tanto pode ser a própria consciência como outra entidade, os dançarinos movimentam-se em redor. São corpos com movimentos tão torcidos e sofridos como tudo o que se tenta dizer, que se dobram e se afligem, que de vez em quando desaparecem no meio da roupa e que se tocam num espanto permanente de contacto. “Ando há 15 anos a desenvolver uma certa linguagem física, este esforço de dar uma consistência visual às emoções para as quais nem sequer temos palavras”.
Não interessa se é no meio do lixo ou a expor as emoções de travestis idosos, como aconteceu em Gardenia, ou em pleno processo de crucificação como em Pitié!: é pelo torcer e destorcer dos corpos que se reconhece Platel, nesse contacto entre referências externas e tudo aquilo que consegue arrancar do interior dos bailarinos. “Elsie, que nos viu a trabalhar mais a partir de fora, estava assustada com a liberdade que os meus bailarinos conseguem atingir ao improvisar. No início ficava desconfortável”.
Estas dificuldades de exposição da actriz entraram em ligação directa com outra das inspirações externas da coreografia, uma inspiração que define também a música. “Vi uma vez um vídeo de uma actuação chamada Tauber Bach, em que pessoas surdas foram desafiadas a cantar músicas de Bach. E eu sei que para um surdo isso é um desafio imenso, sobretudo porque eles sabem o efeito cómico que ouvi-los cantar pode ter nos outros”.
Coragem para comunicar
Quando as duas inspirações surgiram nas sessões de trabalho, nem Platel conseguiu perceber de imediato qual era a conexão entre a realidade de uma mulher a viver numa lixeira e as dificuldades de um grupo de surdos a cantar Bach, mas elas foram surgindo. “Pode ser essa coragem que às vezes temos de ter para conseguir comunicar, esse gesto destemido de exprimir uma coisa sincera que está escondida dentro de nós. Mas também pode ser muito mais do que isso. Gosto que cada pessoa se confronte com a performance e retire a sua experiência”.
Podem ser as frases soltas vindas directamente de Estamira – “muita gente não suporta estar aqui” –, os gritos com toada musical que nascem de um espectáculo de surdos ou o gesto de um bailarino que tenta dobrar outro para caber dentro de um carrinho de mão, ou mais um bailarino que perde algum tempo a beijar uma maçã de Adão alheia. O que importa é sentir por alguma das vias que é possível “sobreviver com dignidade perante as mais impossíveis circunstâncias”.