Mas o choque da expedição punitiva dos jihadistas contra o Charlie Hebdo talvez tenha despertado o Continente para algumas realidades. A saber:
1. O terrorismo ideológico jihadista veio para ficar. Ligado ao Estado Islâmico ou a qualquer ramo da al-Qaeda, tem uma causa, uma organização, uma estratégia e militantes.
2. A defesa contra o terrorismo vai implicar necessariamente restrições de liberdades, garantias e direitos. E pode trazer também discriminações e suspeições em relação a comunidades consideradas de risco.
3. O jihadismo não representa todo o Islão, mas tem raízes numa forma radical de salafismo, a mais intransigente na defesa de uma interpretação fundamentalista e de uma prática rigorista do Alcorão.
4. Os seus seguidores justificam a Guerra Santa contra os 'cristãos' (neste momento sobretudo os americanos e os franceses), os judeus e os muçulmanos transviados – os xiitas e a maioria dos governos árabes e islâmicos.
5. Autoridades institucionais do Islão, como o grande mufti da Arábia Saudita, a Organização de Cooperação Islâmica, o Conselho Indonésio dos Ulemas, o grande imã da Universidade de al-Azhar do Cairo e o grande aiatola Naser Makarem Shirazi do Irão, dirigente xiita, têm condenado abertamente organizações como a al-Qaeda, o Estado Islâmico e o Boko Haram. Para estas figuras e instituições de referência no mundo islâmico, os terroristas são iguais aos karajitas, isto é, além de serem terroristas e rebeldes, são hereges.
6. O objectivo dos radicais é reunirem o maior número de muçulmanos sob a sua bandeira. Para tal, querem aparecer como defensores da religião e dos seus símbolos mais sagrados, por oposição aos 'moderados' – os governantes muçulmanos conservadores ou progressistas que pactuam com os ocidentais -, cúmplices dos heréticos e dos profanadores que, no Ocidente, denigrem o Islão.
7. Na sequência da publicação de caricaturas de Maomé no Charlie Hebdo após o ataque de 7 de Janeiro, manifestantes anti-Charlie em países muçulmanos, como o Níger, acabaram a queimar igrejas cristãs.
Aqui há 20 ou 25 anos, na ex-Jugoslávia, assistimos a uma guerra dita 'religiosa' provocada e liderada por ateus e agnósticos – os antigos chefes comunistas -, que incitaram crentes sérvios, croatas e muçulmanos a matar-se entre si.
Deus nos poupe a uma 'guerra de religião' em que políticos 'livres pensadores' (os 'deles' e os 'nossos') façam dos crentes carne para canhão dos seus princípios ou da falta deles.