Foi director do Teatro Nacional Dona Maria II, acabando afastado de forma polémica. Neste momento, tem uma exposição no Museu do Design e da Moda, em Lisboa, onde estão expostos 190 trajos seus.
O MUDE tem patente a exposição De Matrix a Bela Adormecida, onde mostra o seu trabalho como figurinista. Há muito tempo que pensava expor os seus figurinos?
Desde que estou a ensinar cenografia e figurinos que tenho reflectido cada vez mais sobre estas áreas. E a verdade é que já fiz tantos figurinos que comecei a pensar que os devia expor em Lisboa, até porque, há uns anos, já tinha feito uma exposição no Porto, mas mais concentrada na questão espacial e na cenografia. Comecei a pensar nisto, mas ainda de forma vaga. Nunca tinha pensado no MUDE, apesar de vir cá regularmente ver exposições e mandar cá os meus alunos para analisarem peças. E por isso tinha o contacto da Bárbara [Coutinho, directora do museu]. Há cerca de um ano e tal fiz duas óperas na Gulbenkian e como havia pouco dinheiro resolvi ir aos 500 e tal trajos que fiz, para tentar encontrar coisas que pudesse utilizar. E percebi que diferentes personagens podem caber dentro de um mesmo trajo. Achei essa transversalidade interessante, comecei a pensar nisto e entretanto mandei um SMS à Bárbara para que viesse ver estas óperas. Ela estava no estrangeiro, mas quando regressou disse-me que queria ver as minhas peças. Mal as viu, disse que tinha de fazer uma exposição no MUDE.
O que foi mais difícil?
Tudo. Foi muito trabalho. Nunca me passou pela cabeça que fazer uma exposição de coisas que já existiam desse tanto trabalho. São muitas peças. Sentei-me e fiz, de memória, uma primeira selecção. Vieram uns 20 trajos a mais, que não foram expostos. Expostos estão 190 trajos completos. A Bárbara tinha sugerido um número inferior e hoje percebo-a: quanto maior é a nau, maior é a tormenta. Ela falou em 150, mas a minha primeira selecção tinha 240. O pior foi decidir o que cortar.
Qual foi o critério de escolha?
Escolhi aqueles de que gosto mais, que é uma razão muito plausível. Além disto, tentei pensar quais as obras mais emblemáticas e que definiam melhor a minha abordagem ao figurino. A primeira ideia que tive foi fazer a instalação das Willies, da Giselle.
E porquê este título?
Era o que tinha pensado para o meu doutoramento. É a essência do meu trabalho: entre a dimensão do super-herói, como no Matrix, que se tornou um conceito, e o outro lado, o da Bela Adormecida.
Quando olha para estas peças recorda as pessoas que as usaram? É impossível dissociar o figurino, quem criou e quem usou?
Sim, mas ainda há outra dimensão: a das palavras, do texto e da própria sonoridade dessas palavras. E isto também se aplica aos passos de dança.
Mas que relação cria com as pessoas que usam os seus figurinos?
Criam-se relações de cumplicidade, mas que são silenciosas. Habituei-me a observar a relação das pessoas com o seu corpo e a forma como entendem o trajo como uma camuflagem que tenta 'corrigir' um aspecto do corpo. As pessoas normalmente têm problemas com partes do corpo às quais os outros nem dão importância.
E verbalizam essas inseguranças?
Não, mas acabam por ter uma linguagem corporal que as denuncia. O primeiro local onde levam as mãos quando provam um fato, por exemplo, é o sítio com o qual têm problemas e portanto é aí que tenho de dedicar mais atenção. Nunca vão assumir aquele pormenor, quando muito colocam resistências, mas em surdina. É um diálogo muito privado, ao qual eu, como figurinista, assisto. Muitas vezes fiz alterações dando a desculpa que não gostava do que tinha feito, mas fi-lo porque senti que havia algum desconforto da parte de quem os iria usar. O figurino ajuda na construção das personagens, é um apoio para construir aquele outro corpo e tenho de ter isso em conta. Tenho actores com grande experiência que me dizem que vestem o que eu quiser. Os actores menos experientes queixam-se mais, por exemplo, de roupa demasiado pesada. Já para um actor com mais experiência, um casaco pesado pode ajudá-lo. Isso aconteceu, por exemplo, com a Eunice, na peça Madame. Tinha um casaco pesadíssimo e parecia uma pluma a pairar quando entrava em palco.
Trabalhou muitas vezes com Eunice Muñoz?
Não, foi apenas dessa vez. A pessoa para a qual fiz mais figurinos deve ter sido a Ana Lacerda [primeira bailarina da CNB]. Lembro-me que, uma vez, estávamos a ver um ensaio da Giselle e ela disse-me que lhe faltava qualquer coisa no fato, mas não sabia o quê. Fui para casa a pensar nisso. Uns dias depois comprei na rua da Conceição dois raminhos pequeninos de violetas africanas, em tons bordeaux, e coloquei na parte de fora da saia, a apanhar ligeiramente a musselina. Quando ela viu o fato disse que era exactamente aquilo que faltava porque havia um movimento que fazia com as mãos e que antes não estava lá nada. Com as flores passou a estar e assim o movimento ganhava mais força.
Apesar do que acabou de dizer sente que o figurinista e o cenógrafo são figuras às quais não é dada muita atenção? Não haverá muita gente que escolhe um espectáculo em função de quem assina os figurinos ou o cenário.
São áreas relegadas para segundo plano e isso vê-se logo nos programas: primeiro vem o encenador, depois o cenógrafo, depois os figurinos e depois o desenho de luz. Há esta escala e é-se pago de acordo. O trajo faz parte do nosso quotidiano e por isso está num plano em que não lhe damos a implicação que ele tem. Não é apenas algo para tapar o corpo. Para mim, o figurino cria espaços e conta histórias.
Onde vai beber inspiração? É preciso ter uma enorme biblioteca mental?
É necessário um grande conhecimento da história do trajo, mas também da pintura e de outras artes. Sou do tempo em que, se queríamos informação, tínhamos de ir aos museus, às bibliotecas, tínhamos de consultar livros. E eu tive a sorte, não que o meu pai quisesse que eu fosse artista, mas achava que tínhamos de ter cultura e portanto foi sempre comprando livros de arte e eu fui-me habituando a ver esses livros. Sempre tive o gosto pelo livro e portanto sempre comprei muitos livros a pensar que um dia me poderiam ser úteis. Tenho livros que me foram úteis 20 anos depois de os comprar. E fui construindo a minha biblioteca, física e mental.
Os seus pais tinham ligação às artes?
Não. A minha mãe não trabalhava e o meu pai era funcionário numa grande empresa.
Desde criança que guarda essas recordações ligadas à descoberta das artes?
De certa forma. O meu pai tinha essa preocupação de ter certos livros. Ele não nos dizia que estavam ali, mas estavam lá e eu tinha consciência disso. Além disto, o irmão do meu pai tinha uma grande biblioteca e eu passava lá muito tempo. E tinha uma prima da minha mãe que tocava piano. Piano foi das primeiras coisas que aprendi e quando era jovem só pensava ser maestro.
O que o seduzia nessa posição?
Não sei… Gostava de música. Alias, a música foi o meu elemento estruturante. A música formou-me.
Arrepende-se de não ter seguido uma carreira na música?
Não. Em geral não olho para trás e penso 'ah, que pena'. Para mim, a vida foi sempre avançar. Vivi muitos anos fora, fiz muitos espectáculos fora, fiz muitos espectáculos cá. Saí e entrei diversas vezes e fui diversas vezes apanhado pelo sistema de vida cá e acabei cá. Andei sempre cá e lá.
Viveu cerca de 20 anos em Londres. O que o levou à capital inglesa?
Andava em Arquitectura e, ao fim de três anos, não quis continuar. Achei que o ensino de Arquitectura, na altura, era bastante limitado e tinha um conceito unidimensional. Além disso, quis fugir à tropa. Comecei a interessar-me mais pelas artes e fui tentar perceber onde é que, na altura, as artes plásticas eram mais interessantes. Percebi que não era em Paris, onde o ensino era bastante académico, mas em Londres, onde o ensino era mais inovador.
O que foi estudar?
Fui estudar artes plásticas na Saint Martin's. Tirei um curso experimental no departamento de Escultura, que juntava fotografia, cinema, instalação, pintura… Depois fui para o Royal Colllege estudar Environmental Media, porque queria fazer instalações e comecei a trabalhar com o Nigel Coates, que era arquitecto. Entretanto, na recta final desse curso, em 1978, o Ricardo Pais convidou-me para vir a Portugal fazer um espectáculo.
Nunca tinha feito nada em teatro. Como surge esse convite?
Sempre vi muitos espectáculos e desde os 14 anos que lia peças de teatro e imaginava um espaço daquelas peças. Ainda hoje digo aos meus alunos que, para aprendermos, temos de fazer um pouco de arqueologia, temos de ter a curiosidade e imaginar como é que faríamos aquilo que estamos a ver. Quando fui para Londres, vi ainda mais coisas e sobretudo vi muito mais cinema. Ia às late night sessions, que eram dois filmes de seguida. E lembro-me de levar colegas meus pela primeira vez à ópera. Tinha conhecido o Ricardo em Londres, porque pertencemos ambos a essa geração em que as famílias foram todas afectadas pelo afastamento dos mais jovens. Conhecemo-nos lá, depois ele regressou e eu continuei. Trabalhava em performance art e ele viu algumas das minhas instalações e convidou-me para conceber o espaço para o Frei Luís de Sousa. Foi o meu primeiro trabalho em teatro.
Em termos emocionais foi especial trabalhar em Portugal depois de estar há tantos anos em Londres? Era muito diferente este Portugal daquele que tinha deixado?
Tinha ido para Londres em 1970 e só a seguir ao 25 Abril comecei a vir a Portugal, de férias. Aprendi a apreciar Portugal pela distância, comecei a perceber que havia coisas que me tinham marcado. Eu era o português. Fui muito influenciado por um professor das Belas Artes, o mestre Lagoa Henriques, que me ensinou a olhar e com isso habituei-me a amar Lisboa. Ainda assim, achei sempre que não voltava.
O que o fez mudar de ideias?
Desde 78 que, de vez em quando, o Ricardo me desafiava para fazer umas coisas. Mas só regresso mesmo 11 anos depois. Para aí em 85, vim cá fazer um espectáculo no ACARTE que na altura era dirigido pela Madalena Perdigão. Uns tempos depois de voltar para Londres, ela contactou-me a perguntar se não queria ser assistente dela. Disse que ia pensar, mas recusei. Passados uns anos, talvez três, vim fazer um espectáculo no Nacional, e o director, Afonso Botelho, disse-me que precisava de uma pessoa para assistente. Voltei a dizer que ia pensar e fui para Londres. Depois, em 89, volto para outro espectáculo no Nacional e o meu amigo José Ribeiro da Fonte, que já morreu mas à data era director artístico no São Carlos, disse-me que gostava que eu fosse consultor no São Carlos e que, como ia ficar três meses a trabalhar em Portugal, tinha tempo para pensar na proposta dele. Comecei a pensar e a verdade é que estava a acontecer uma debandada em Londres e a cidade tinha, à data, uma sociedade de consumo que já não me interessava… Além disto, comecei a pensar o que é que as pessoas viam em mim para me desafiarem para cargos e pensei também que, se à terceira recusasse, se calhar nunca mais teria outra oportunidade. E aceitei. Passados três meses, o Ricardo Pais ligou-me a dizer que tinha sido desafiado para director do Nacional e que tinha posto como condição que eu fosse subdirector.
Aceitou logo?
Sim. E fui subdirector durante quatro anos, mas entretanto o Ricardo demitiu-se. Nessa altura, em 1991, fui desafiado para fazer o Festival Internacional de Teatro (FIT), e aceitei. Achei que o festival era a forma de voltar lá para fora. O FIT foi crescendo e, ao fim de quatro anos, comecei a pensar que não queria que me morresse nas mãos e por isso devia sair enquanto ele estava no auge. Fui para Paris, mas passados uns anos voltei a ter muito trabalho em Portugal: por um lado no São João, onde entretanto estava o Ricardo, por outro na CNB. E os projectos da CNB eram sempre de grandes dimensões, até porque assinava todos os figurinos que, com o corpo de baile, são muitos. Ainda assim, no início de 2002, comecei a pensar em ir-me outra vez embora.
Nesta altura é convidado para director do Nacional, cargo que aceita, mas do qual acaba afastado dois anos depois pela ministra Isabel Pires de Lima, em circunstâncias que nunca foram esclarecidas.
Nenhuma saída destes sítios é doce. A não ser que nos demitamos antes de correrem connosco… São lugares próximos do poder e, em Portugal, há uma ingerência muito grande do poder político na cultura. É pena que os governantes não percebam que mudar alguém que está à frente de uma casa como o Nacional é um desperdício de dinheiro. Os países ricos não fazem isto. Deitar um director fora é uma decisão política, que implica gastar dinheiro mal gasto.
Foi só nesta altura que descobriu o ensino?
Quando saí do Nacional fui para a Escola Superior de Teatro e Cinema, onde entrei por concurso, convencido por uma grande amiga. Tendo na família vários professores, como o meu tio da biblioteca, que era professor universitário, eu nunca quis ensinar. Nunca foi algo que me entusiasmasse, mas revelou-se fantástico. Ser professor permite-nos ajudar os mais jovens a abrir horizontes, tal como o mestre Lagoa Henriques fez comigo. Ensino cenografia e figurinos. Além disto, acabei por ser presidente da escola durante os últimos três anos.
Foi, aliás, nessas funções que criticou os cortes no ensino das artes. Como vê o futuro para, por exemplo, os seus alunos?
Venho do tempo em que não havia nada. Sou sempre optimista. Gosto de pensar que um dia será melhor, mas não sei quando. Não tenho uma bola de cristal.