O programa repete-se há mais de 15 anos, três vezes por ano. “Nem combinamos. Quando damos por nós, já vamos a caminho de Sintra”, conta Luís Alberto Carvalho, cónego e pároco da igreja Nossa Senhora de Fátima, em Lisboa. Mas o encontro dos quatro amigos que frequentaram a mesma turma no seminário acontece há mais de 35 anos, todas as primeiras segundas-feiras de Março, Junho e Novembro. “Praticamente desde que fomos ordenados padres”. Dos cinco jovens que entraram no Seminário dos Olivais em 1973, restam quatro: Manuel Clemente, Luís Alberto, Joaquim Pedro, padre de Torres Vedras, e José Abílio, da diocese de Santarém. O padre João António Costa já faleceu.
O tempo é de passeio e descontracção. Mas nestes encontros, tal como nas férias que Luís Alberto passa com o patriarca, a oração não é descurada. E aqui o mais velho impõe o ritmo. “Estamos a passear e de repente ele diz: estou com os níveis de oração em baixo. Vou rezar e encontramo-nos daqui a uma hora. É um homem profundamente espiritual”, conta o cónego, acrescentando que isto tanto pode acontecer durante a visita a uma igreja como junto a uma lagoa na Serra da Estrela, outro lugar de eleição de Manuel Clemente. A diocese tem uma casa nas Penhas Douradas onde o patriarca passou muitas férias com os seminaristas quando era reitor do seminário. Voltou lá há pouco tempo e, já patriarca, continuou a dormir nos beliches.
No Verão, os quatro amigos preferem zonas onde se possam visitar igrejas e monumentos e passear no campo, seja serra ou mar, como a Galiza, Andaluzia, Bretanha ou Itália. Acordam cedo, celebram missa no hotel e antes das 10h da manhã partem à descoberta. Profundo conhecedor da História, Manuel Clemente assume naturalmente o papel de guia destas visitas, enriquecendo-as com o relato da vida de um santo que todos desconhecem ou a análise de um período da História. “Com ele estamos sempre a aprender”, acrescenta outro amigo de longa data, o cónego Carlos Paes, sublinhando como esta visão histórica marca a personalidade do patriarca e a sua forma de encarar os problemas. “Contextualiza-os e relativiza-os, desdramatizando-os. Mas fazendo uma leitura consciente e responsável da realidade”.
Nestes convívios, também se confidenciam os momentos decisivos da vida de cada um. Como a escolha de Manuel Clemente para chefiar o Patriarcado, em 2013, ou a sua nomeação para cardeal, conhecida há um mês e que será formalizada no Consistório de sábado, dia 14 de Fevereiro. “Mas não fazemos disso assunto das férias. Nisso, como em tudo, ele tem um lema: se a Igreja pede, eu aceito. Não é um carreirista”, sublinha Luís Alberto, considerando que este princípio se aplica “tanto ao serviço mais discreto como ao de grande responsabilidade”.
Vocação adiada pelos estudos
As capacidades e o carisma do cardeal são-lhe reconhecidos pelos amigos desde o início da sua caminhada sacerdotal. Por isso, a passagem de bispo auxiliar a patriarca, e agora a cardeal, não surpreende. “Entre colegas costumávamos imaginar-nos dali a 50 anos. E púnhamo-lo sempre como patriarca”, conta o amigo.
Carlos Paes, na altura vice-reitor do Seminário dos Olivais, lembra-se bem do jovem Manuel, com quem conversou muito antes da admissão no seminário. “Estava a terminar o curso de História, pois a família disse-lhe que tinha de estudar antes de pensar seguir a sua vocação”. Assim foi. Apesar de ter confessado que queria ser padre aos 13 anos, Manuel, nascido e criado numa família católica da classe média de Torres Vedras, veio estudar para Lisboa, e só quando acabou o curso entrou para o seminário. Tinha 25 anos.
“A vocação nasceu na família, influenciada pela mãe, que era muito cristã, e foi consolidada na catequese e no escutismo”, diz Carlos Paes, que agora é o vigário-geral da diocese conduzida pelo patriarca. No percurso de discernimento vocacional há outro actor importante: o padre da sua infância, Joaquim Maria de Sousa, a quem desde cedo o menino Manuel quis seguir as pisadas. Mais tarde, seria o mesmo a recebê-lo na paróquia de Runa, Torres Vedras, como coadjutor, poucos meses após a ordenação como padre. Aí cumpriu os únicos seis meses de trabalho paroquial.
No tempo de estudante em Lisboa, Manuel entregou-se a outra causa: o escutismo. Francisco Maia chefiava o agrupamento de São João de Brito onde Manuel foi pedir para ser escuteiro. “Tinha um relacionamento extraordinário com os miúdos. Mas nunca se destacou dos outros pela fé”, recorda, confessando que foi até com surpresa que acolheram a notícia da entrada no seminário. Manuel Clemente acampou durante muitos anos, com o grupo de Lisboa, mas também em Torres Vedras, onde ajudou a criar o núcleo de escuteiros. Já bispo, era possível vê-lo em acampamentos e a dormir numa tenda. Em 2012, voltou a marcar presença num encontro com centenas de escuteiros.
De aluno a reitor do Seminário
Em 1974, com os colegas Luís Alberto, José Abílio, Joaquim Pedro e João António, Manuel Clemente juntou-se aos dez seminaristas que ocupavam o Seminário dos Olivais. “Fomos o primeiro grande curso depois da debandada dos anos 60”, lembra Luís Alberto, sublinhando que Manuel já era uma referência para os colegas. No fim do curso, e já feito padre, iniciou o doutoramento em Roma mas não se adaptou. Em poucos meses estava de volta ao Seminário, primeiro como formador, depois como vice-reitor e reitor.
É nesses corredores largos e frios que o aluno José Miguel Pereira recorda o padre Manuel como alguém próximo e conciliador. “Tinha sempre uma visão positiva dos problemas e extraía o melhor que havia em nós. Mas para nós, jovens com espírito crítico, isso nem sempre era fácil de aceitar”, conta. O então seminarista ocupa agora o lugar que foi de Manuel Clemente durante anos: o de reitor do Seminário dos Olivais, onde estudam hoje 46 alunos. É este o ritmo natural da vida da Igreja: ontem estudante, hoje pastor.
Fora do núcleo de amigos, a ascensão do sacerdote também não surpreendeu. “Era o sucessor natural de D. José Policarpo”, lembra o jornalista António Marujo, especialista em assuntos religiosos e autor do blogue Religionline. A escolha para cardeal decorre também de uma regra histórica – todos os patriarcas de Lisboa foram cardeais -, embora isso não desmereça as suas qualidades. “Como a capacidade de se aproximar das pessoas e de estabelecer pontes”, diz Marujo.
Luís Alberto subscreve esta ideia. Aliás, nota que a proximidade com as pessoas – algo que muitos julgam ser uma novidade absoluta no estilo do Papa Francisco – é uma das 'imagens de marca' do patriarca. “Uma pessoa atenta ao outro, com uma enorme disponibilidade. E uma capacidade de trabalho e de organização impressionantes”. Alguém que, apesar dos constantes problemas que tem de resolver, “não vive stressado com o que há-de vir, pois tem capacidade de ligar e desligar e de se focar numa coisa de cada vez”.
Uma agenda apertada e a ânsia de chegar a todos
A rotina de Manuel Clemente é alucinante. O seu dia começa antes das sete da manhã e acaba tarde, deixando poucas horas ao sono. Visita os recantos da diocese, recebe inúmeras pessoas, entre políticos, representantes dos patrões, sindicatos, crentes e descrentes, do mais importante ao mais humilde, numa agenda sobrecarregada pelos apelos constantes para participar em eventos culturais. “Se é uma coisa fora da Igreja, ele vai. Tem esta lógica de relação com o mundo e não perde uma oportunidade de dar a cara pela mensagem cristã. Aos que o consultam deixa uma mensagem conciliadora, lembrando que a solução dos problemas pertence a todos”, diz o cónego Luís Alberto. Na sua vida agitada, o patriarca ainda encontra lugar para ir à casa de família, em Torres Vedras, onde ainda reside uma irmã, e onde foi sempre que pôde quando a mãe era viva.
Foi no Porto que a sua maneira de ser mais deu nas vistas, garante Carlos Grijó, católico da diocese que Manuel Clemente dirigiu entre 2007 e 2013. “Aqui ainda se beija o anel ao bispo e convive-se apenas dentro de casa. Ele revolucionou tudo. Visitava as igrejas mais remotas, recebia toda a gente, por onde passava criava laços. Trouxe as pessoas para a rua”. Apanhando o início da crise económica, desdobrou-se em contactos para reunir dinheiro e acudir às centenas de pedidos que caíram sobre a Igreja. O então bispo do Porto chegou a dizer que os portugueses estavam “por um fio”.
O que se passou com a equipa de Nossa Senhora, movimento de espiritualidade para casais a que Carlos Grijó pertence, é exemplo desta proximidade: “A equipa estava sem assistente espiritual quando um de nós se cruzou com D. Manuel e lhe perguntou se não nos queria conhecer. Atrapalhado com o atrevimento, aceitou aparecer numa reunião e desde aí ficou a acompanhar-nos”, diz Grijó. “Não nos conhecia e durante seis anos nunca faltou ao encontro mensal. Estudava o tema e vinha para estar, não para olhar para o relógio ou atender o telefone. Mas tínhamos noção de que estava no Porto a prazo. Era um homem grande demais para ficar por aqui”.
António Marujo reconhece esta dinâmica pastoral e as qualidades apontadas a Manuel Clemente, e acredita que a Igreja tem muito a ganhar com o novo cardeal. Porém, alerta que “na Igreja as coisas não mudam só porque muda o padre, o bispo ou o Papa. E em Lisboa, se não houver mudanças ao nível das estruturas da diocese, receio que muitas das suas vontades fiquem por concretizar”. Até porque não vê o novo cardeal como uma pessoa para dar um murro na mesa – o que muitos consideram uma fragilidade.
Para já, a estratégia em Lisboa passa pela convocação de um sínodo: uma caminhada de dois anos onde os padres e leigos são desafiados a reflectir sobre a realidade e a sugerir as prioridades de acção da diocese. “O estilo dele é sinodal. Não é um bispo dirigista que traça um plano e anda em cima dos outros para o concretizarem”, diz Carlos Paes. Mais uma semelhança com o estilo do Papa, sublinham os que lhe são próximos. Francisco também pôs em marcha uma consulta aos fiéis: o sínodo sobre a família.