Embora tenha vendido mais de 100 milhões de exemplares em todo o mundo e tornado milionária a inglesa E L James – pseudónimo de Erika Leonard, uma produtora da BBC um pouco entediada com a sua vida -, As Cinquenta Sombras de Grey é visto pela comunidade literária como um objecto que não é literatura – ponto número um – e que também não é muito erótico – ponto número dois. No mundo inteiro tem sido 'vendido' como 'pornografia para mamãs'.
A escritora Inês Pedrosa recorda que quando folheou a tradução portuguesa numa livraria ficou com a impressão de que se tratava de uma versão “com algemas e chicotes” de O Chauffeur Russo, “um dos primeiros êxitos da literatura cor-de-rosa um pouco picante, em que a heroína apaixonada descobre que o chauffeur é afinal um príncipe”. Também Anastasia Steele irá na saga de E L James (são três volumes) transformar o frio Grey (que não “pratica o romance”) num príncipe à sua medida. “É o mesmo tipo de linguagem, os olhares penetrantes, o homem seguro de si, e tantos lugares comuns”, continua a escritora e ex-directora da Casa Fernando Pessoa. E pouco credível, uma vez que “não deve existir nenhuma bela mulher de 21 anos completamente casta”. Entediante, numa palavra. “Do ponto de vista da escrita é tão rasteirinho que motiva pouco. Do ponto de vista do sadomasoquismo tem pouca força”.
Francisco José Viegas, autor de vários romances, ex-secretário de Estado da Cultura e editor da Quetzal é mais benevolente: “É um xarope popular e muito profissional, uma espécie de democratização do uso de algemas, fitas de seda e chicotes. Desde que as pessoas não se magoem, não vem daí grande mal ao mundo. Tenham cuidado, é só isso”.
Considerando o livro 'fracote', Inês Pedrosa aconselha outras fontes mais recompensadoras para quem se queira dedicar à leitura erótica (já para não falar de Marquês de Sade, a fonte principal da cultura BDSM). No caso de Inês Pedrosa, o Novas Cartas Portuguesas de Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa, um texto publicado em 1971, considerado imoral e pornográfico pelo regime – foi uma revelação. “Li-o porque estava escondido num armário e foi uma completa novidade para mim, que não conhecia nada do tema”.
Mas Portugal não tem muitas páginas boas na cama, considera a autora. Num levantamento sobre o uso de metáforas eróticas que fez enquanto jornalista de O Independente (jornal extinto em 2006), muitas eram de inspiração náutica e militar e bastante simplistas. “Havia muitos búzios e grutas e ceptros e espingardas de carne”. Mais rico e plástico, diz, é o português do Brasil onde “pau é melhor que pénis e transar é bonito”. Com uma ditadura menos moralista, grandes escritores publicaram no Brasil livros muito livres: “O Jorge Amado escrevia coisas explícitas e o Rubem Fonseca publicou um excelente livro, A Grande Arte, sobre violência e poder, onde há grande dimensão erótica”.
Apesar de tudo, em português há obras que Inês Pedrosa elogia, como a poesia erótica de Maria Teresa Horta, “que é dedicada ao corpo masculino como eu não vi em lado nenhum. E se calhar é por falar do corpo dos homens como se costuma falar do das mulheres que ela nunca ganhou nenhum prémio de poesia”. E o romance Alexandra Alpha, de José Cardoso Pires, tal como o conto Lulu, “uma peça sobre zoofilia, em que uma mulher se entende com o seu lobo da Alsácia”, são outros exemplos de páginas boas.
Entre os romances fundamentais – além da obra polémica que levou o nome das 'três Marias' além-fronteiras, quando o regime decidiu processá-las por imoralidade -, Inês Pedrosa cita O Amante de Lady Chatterley, de D.H.Lawrence, “pela maneira como descreve o desenrolar da conquista do prazer por parte da mulher”. E, depois, nos livros de Milan Kundera – autor sobre o qual (juntamente com Jorge Semprún) está a escrever uma tese de doutoramento – “há uma dimensão erótica muito grande. É a única dimensão que escapa nos regimes totalitários onde decorre a acção dos seus romances”.
Francisco José Viegas encontra nos livros que o influenciaram “uma mistura de malandragem, adolescência, pouca vergonha e inveja”. Como adolescente, o vitoriano Fanny Hill, de John Cleland, foi uma inspiração. No resto, diz, “é o mesmo de toda a gente: Anaïs Nin, Sade, Pauline Réage, Henry Miller, Kawabata. E do ponto de vista literário as piscadelas de olho de Mario Vargas Llosa ou a timidez de Nabokov”. O problema, sustenta, “é que muitos dos chamados autores de 'literatura erótica' são tias moralistas como D.H.Lawrence: falta-lhes o tom libertino, sem desculpa”.
Uma literatura de mau sexo
As críticas do editor vão para a literatura portuguesa, terreno infértil do erotismo. Não há nada que satisfaça, “tirando algumas páginas de Cardoso Pires – ele tinha a noção da malandragem, sim” e Eça de Queirós. “A personagem mais erótica da literatura portuguesa é a Sra. Condessa de Gouvarinho, d'Os Maias. Ninguém a suplanta em imaginação, masoquismo, desejo de adultério, sofrimento, feminismo, perfume de verbena e clareza de intenções”. Fora isso, nem bons livros eróticos, nem sequer bons momentos. “Há quase sempre uma tentação de fazer aquela mistura sórdida e fatal de 'erótico, satírico e burlesco', que desgraça tudo. Em língua portuguesa acho que, na actualidade, ninguém escreveu sobre sexo como Rubem Fonseca – as páginas de A Grande Arte são genuínas, intensas, tão bem escritas”. E Pornopopeia, do brasileiro Reinaldo Moraes, livro editado pela Quetzal, é outro dos livros de referência. Já no que se escreve em Portugal, o tom é “pedagógico e machista”, com “cenas pós-coito em que o macho explica à senhora o que é o orgasmo ou se gaba ao leitor da sua performance. Ou então transformam tudo numa espécie de colecção de metáforas, muito banais e cheias de literatura forçada – a gente está a ver o que querem dizer, mas fica-se cheio de vergonha por causa do mau gosto”. Resumindo, segundo Francisco José Viegas, “fode-se muito mal na nossa literatura”.
Maria Teresa Horta, autora de As Luzes de Leonor -livro que ganhou o Prémio D. Dinis e onde se descreve também a vida sentimental e sexual da marquesa de Alorna, publicado em 2011, ano em que saiu à luz do dia a primeira edição de Fifty Shades of Grey -, aponta uns oásis eróticos em Portugal. Recomenda a obra fundamental de David Mourão-Ferreira Música de Cama, “um livro incontornável de recolha da sua poesia erótica, onde há um encantamento raro em torno da mulher”. E a poesia de Eugénio de Andrade, bem como a Antologia da Poesia Portuguesa Erótica e Satírica de Natália Correia. O Amante de Lady Chatterley, Delta de Vénus, de Anaïs Nin, os livros de Henry Miller Trópico de Câncer e Trópico de Capricórnio, O Amante de Marguerite Duras, são outras recomendações.
Ao nível da literatura erótica de grande sucesso mas pouco interesse, Maria Teresa Horta recorda os clássicos Histoire d'O e Emmanuelle, ambos escritos sob pseudónimo e ambos também adaptados ao cinema.
Imagem: Uma ilustração de época de Os Infortúnios da Virtude, do marquês de Sade