Criada dentro do serviço de Psiquiatria há apenas oito meses, esta unidade especial já acompanhou mais de 50 adolescentes e jovens adultos viciados em videojogos. “A procura das consultas tem estado a aumentar”, adianta ao SOL o psiquiatra João Reis, um dos cinco médicos do Núcleo de Utilização Problemática da Internet (NUPI), o primeiro e único serviço público que acompanha doentes dos 15 aos 30 anos com este tipo de dependência.
“Todos os casos que nos têm chegado são de rapazes ou homens dependentes de videojogos” diz o médico, explicando que ainda não apareceu ninguém com problemas de adição às redes sociais, como o Facebook, ou viciado em jogos online como o póquer.
A dependência de videojogos está a tornar-se um fenómeno preocupante por todo o mundo: no início do ano, dois jogadores compulsivos morreram em cibercafés, em Taiwan, ao fim de dias seguidos ao computador. Em Portugal não há registo de casos como estes, mas os especialistas admitem estar preocupados com o aumento de jovens que vivem dependentes da internet.
Sem dormir nem comer
Muitos dos doentes que chegam ao Hospital de Santa Maria, conta João Reis, também fazem maratonas à frente ao computador ou da consola. Deixam de ir às aulas e ao trabalho, não dormem nem tomam banho e alguns até se esquecem de comer e isolam-se do mundo. Mas, segundo o psiquiatra, quase todos têm outros problemas psíquicos associados à adição à net, como depressão, ansiedade, hiperactividade e défice de atenção: “São 80% dos casos. É muito difícil perceber se a internet está a ser usada como uma nova forma de manifestação destas doenças ou se sem os videojogos este comportamento aditivo não se teria manifestado”.
A maioria dos dependentes chega às consultas com os pais, que não conseguem lidar com o tempo que os filhos estão agarrados aos videojogos, com as suas constantes recusas em ir à escola ou à universidade e o isolamento num mundo virtual.
O caso mais dramático que os clínicos desta unidade acompanharam entrou no hospital com a Polícia. “Era um jovem na casa dos 20 anos que tinha agredido os pais quando lhe foi retirada a internet em casa”, recorda João Reis, explicando que, perante o ataque do filho a família chamou as autoridades que o levaram ao hospital.
P. chegava a jogar durante 16 horas por dia. Não estudava nem trabalhava e usava o computador sobretudo à noite, para poder estar na net sem ser interrompido. Isolou-se dos amigos e só convivia online com outros jogadores ou através das redes sociais. Com a família falava apenas o mínimo e indispensável. E foi preciso chegar a uma agressão física para os pais procurarem ajuda médica.
São precisamente reacções de revolta ou de agressão quando os jovens são proibidos de se ligarem à net um dos sinais de alarme para a dependência, explica o psicólogo Pedro Hubert, especializado em adição ao jogo.
À sua clínica privada na Cruz Quebrada chegam cada vez mais adolescentes de 14, 15 ou 16 anos com graves dependências de videojogos. Estes casos já representam 20% da totalidade das consultas, quando há apenas três anos não iam além dos 2% de atendimentos.
“Estes miúdos refugiam-se na internet e isolam-se do mundo construindo uma realidade paralela”, explica o psicólogo, lembrando que nos videojogos conseguem assumir personalidades que não têm no dia-a-dia. Além disso, nota, como estão em rede com outros jogadores criam “amigos virtuais” que são substitutos dos colegas tradicionais. “Nos jogos, têm rankings e conseguem impor-se de uma forma que não conseguem na vida real”, frisa.
Muitos amigos virtuais são feitos durante desafios entre equipas com jogadores espalhados pelo mundo, com quem trocam estratégias em chats. Entre os videojogos preferidos dos adolescentes estão os que se jogam em equipas. Um é o League of Legends, um jogo de estratégia, com batalhas e um tempo limitado. Outros dos mais aliciantes é o World of Warecrafts, que tem mais de 10 milhões de jogadores registados: também é de lutas online, mas nunca tem um fim.
”Estes jogos são desenhados para serem viciantes”, reconhece ao SOL Nelson Zagalo, fundador da Sociedade Portuguesa de Videojogos e professor na Universidade do Minho. “O jogador é constantemente desafiado para novas tarefas e os seus resultados têm efeitos nos ganhos da equipa”.
Para o especialista, os videojogos até podiam ser um passatempo saudável. Mas para isso, avisa, os pais têm de começar desde cedo a controlar os filhos. “O computador e a televisão são cada vez mais usados pelos pais para entreter os filhos, sem grande controlo”, critica.
Tentou suicidar-se três vezes
Muitas vezes o controlo parental não é possível. Que o digam os pais de M., que foi estudar Engenharia no Instituto Superior Técnico, em Lisboa, e durante anos levou uma vida dupla, fingindo que ia às aulas. “Só quando devia terminar o curso é que os pais se aperceberam que afinal ficava em casa a jogar, isolado e sozinho”, conta Pedro Hubert, que acompanhou este jovem.
O tratamento destes casos, reconhecem os médicos, é difícil e muitas vezes obriga a um internamento que torne eficaz o corte com a internet e a valorização da pessoa e não do jogador. Alguns ficam internados um mês, outros acabam por precisar de meio ano. É este o tempo que dura, em regra, cada internamento na clínica Villa Ramadas, em Alcobaça, dedicada a doenças da adição. Cada tratamento custa por mês mais de dois mil euros.
No ano passado, foram internados nesta unidade 30 rapazes e raparigas com dependência da net. Tinham entre 15 e 20 anos e dois deles eram espanhóis. “Quando chegam estas pessoas já têm uma série de adições ou problemas associados como a depressão”, explica uma das psicólogas da clínica, Rita Morais, que conduz terapias individuais e de grupo. A especialista garante que o número de doentes tem aumentado e nota que muitos aparecem já em situação limite. “Tivemos um caso de um jovem de 16 anos com dependência da net e uma depressão profunda que já tentara suicidar-se três vezes com medicação”, conta a psicóloga, que continua a acompanhar este adolescente numa consulta mensal. “Tinha um enorme sofrimento psicológico. Só se sentia bem dentro do jogo e chegava a jogar dois dias seguidos”.
Ter o dealer' em casa
A recuperação nestes casos é sempre problemática porque para jogar não é preciso usar um computador ou consola. “Basta ter um smartphone para estar ligado à internet”, lembra Nelson Zagalo, acrescentando que entre os universitários a preferência vai para jogos facilmente acessíveis por telemóvel, como o Angry Birds ou o Candy Crush.
Num país onde se vendem seis mil smartphones por dia é difícil fugir à net . Por isso, avisam os especialistas, é fundamental que quem sofre deste vício entenda que, para o resto da vida, não pode passar mais de duas horas no mundo virtual. Porque estes doentes, remata o psicólogo Pedro Hubert, “têm o dealer em casa”.
joana.f.costa@sol.pt
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