Sniper Americano (por Aisha Rahim)
Discutir um filme pela sua ideologia é um caminho sinuoso – basta pensar em O Nascimento de Uma Nação (1915), de D.W. Griffith, usado como ferramenta de recruta para o Ku Klux Klan e que ficou na História da sétima arte como uma das suas primeiras obras-primas.
E no entanto, todos os anos, a mesma discussão borbulha por ocasião dos Óscares a propósito de um filme de pelotão (O Sobrevivente, de Peter Berg, 00:30 Hora Negra ou Estado de Guerra, de Kathryn Bigelow, e por aí fora).
Não é para menos que a tampa salte do tacho com Sniper Americano (seis nomeações para as estatuetas douradas), assinado pelo assumidamente republicano conservador Clint Eastwood e construído sob o ponto de vista da figura verídica de Chris Kyle (Bradley Cooper), o mais letal atirador norte-americano enviado ao Iraque, na sequência dos atentados de 11 de Setembro de 2001.
As motivações de Kyle não andam longe daquela expressão muito familiar ao ouvido luso, “tudo pela nação, nada contra a nação”. A coisa piora quando a mira de Kyle, qual salvador da pátria americana, nos dá do outro lado da barricada carniceiros de berbequim na mão com intenções não muito mais complexas do que o puro sadismo.
Não sendo propriamente subtil no seu posicionamento, Sniper Americano também não convence em verve sentimental ou reflexiva, caindo em simbolismos bacocos, como aquele em que um inusitado travelling lento segue uma bala dirigida ao melhor sniper iraquiano.
Birdman ou A Inesperada Virtude da Ignorância (por Alexandra Ho)
Com filmes como “Amor Cão” (2000), “Babel” (2006) ou “Biutiful” (2010), o mexicano Alejandro González Iñárritu habituou-nos a filmes em que a forma conceptual tem tanto, ou mais, impacto que o conteúdo.
Em “Birdman” essa aposta estética continua, com o realizador a apresentar o filme todo em plano-sequência, que é como quem diz uma narrativa linear, sem cortes do princípio ao fim.
Sabemos que esta opção não se cumpriu à risca – uma vez que Iñárritu não filmou as cenas todas de seguida e a história prolonga-se para lá dos seus 119 minutos de exibição -, mas é ela que justifica a câmara sempre em movimento, percorrendo os corredores de um teatro da Broadway, em Nova Iorque, enquanto se conta a história de um actor envelhecido, que quer provar ao mundo ser capaz de representar, depois de se ter tornado conhecido ao dar vida ao super-herói Birdman.
Depois de três filmes, Riggan Thomson (Michael Keaton, nomeado para o Oscar de Melhor Actor) rejeitou fazer uma quarta longa-metragem na pele de Birdman e a sua carreira nunca mais teve o mesmo fôlego. À semelhança, de resto, do próprio Keaton, que depois de dois “Batman”, sob a direcção de Tim Burton, decidiu não regressar para o terceiro capítulo.
Essa relação entre a vida real e a representação é usada em proveito do filme, mas não é Keaton que convence em “Birdman”. São os actores secundários, como os excelentes Edward Norton e Emma Stone, que dão vitalidade ao projecto, num filme algo disparatado onde, lá está, a forma disfarça o podre conteúdo.
Selma: A Marcha da Liberdade (por Alexandra Ho)
Nomeado para o Oscar de Melhor Filme, Selma recorda as históricas marchas promovidas por Martin Luther King na cidade com o mesmo nome no estado de Alabama, onde o Nobel da Paz de 1964 inscreveu definitivamente o seu nome na luta pelos direitos civis dos afro-americanos ao protestar pacificamente contra o impedimento ao voto de centenas de pessoas negras.
Em Março, assinalam-se os 50 anos dos acontecimentos e o filme de Ava DuVernay vale, sobretudo, por esse apontamento histórico.
De resto, é um filme banal, que conta uma história mundialmente conhecida e que não justifica a nomeação para o Oscar de Melhor Filme, especialmente quando comparado com outros dos candidatos.
Ainda assim, nota positiva para David Oyelowo, um convincente Martin Luther King.
O Jogo da Imitação (por Alexandra Ho)
Alan Turing era obcecado por puzzles e palavras cruzadas. Essa ideia romantizada de que um jogo pode resolver qualquer problema, até uma guerra mundial, percorre O Jogo da Imitação, filme sobre o brilhante matemático britânico que decifrou o código Enigma, usado pelos nazis para atacar os Aliados, ao criar uma complexa máquina de criptografia que, além de resolver a Segunda Guerra Mundial, é considerada por muitos como o início da Inteligência Artificial.
Inspirado pela obsessão por jogos do génio inglês, o realizador Morten Tyldum estruturou o filme em três partes, criando um mosaico com muitos flashbacks aos tempos da adolescência de Turing (onde se sugere um ligeiro autismo) e ao período de actividade de Bletchley Park, o complexo onde os britânicos tentavam resolver a Segunda Guerra. Assim, a ascensão de Turing a brilhante criptógrafo e a colaborador dos serviços secretos britânicos é retratada, bem como o seu declínio ao assumir uma relação com um homem, na década de 1950.
Como a homossexualidade era proibida, Turing evitou a prisão submetendo-se a uma castração química, mas o tratamento foi tão violento que acabou por empurrar o matemático ao suicídio, em 1954, ao morder uma maçã envenenada com cianeto. Há quem diga, por isso, que a maçã do logotipo da Apple é uma homenagem a Turing, considerado o percursor dos computadores.
Apresentado como um homem inseguro, mas igualmente arrogante e distante, sem qualquer interesse pela opinião de terceiros, era também bastante determinado no que dizia respeito ao seu trabalho e a interpretação soberba de Benedict Cumberbatch consegue transmitir essas nuances todas. Ao contrário de Eddie Redmayne com Stephen Hawking (em A Teoria de Tudo), Cumberbatch não tinha muito material para se apoiar na construção de Alan Turing, uma vez que o seu papel enquanto herói de Guerra foi mantido em segredo até aos anos 80.
O actor inspirou-se, então, no livro Alan Turing: The Enigma, de Andrew Hodges, e nos ensaios e anotações que o matemático escreveu para a Universidade de Cambridge para construir a personagem. É, por isso, um retrato cheio de suposições, mas que para a maioria dos historiadores britânicos é bastante credível. A notável interpretação de Cumberbatch, e os momentos inspirados ao lado da igualmente competente Keira Knightley, não chega, porém, para salvar o filme, cheio de clichés. O mais gritante são as personagens bastante estereotipadas como o militar céptico que só dificulta a vida a Turing, o cientista bonitão que, ao contrário do matemático, é perito em relações sociais, o espião simpático de quem ninguém desconfia excepto o génio da criptografia ou o idealista que enfrenta o dilema de só conseguir poupar a vida do irmão se comprometer a missão secreta de que faz parte.
Grand Budapest Hotel (por César Avó)
Dizer que quem vê um filme de Wes Anderson vê todos é uma tremenda generalização. Há, no entanto, um conjunto de características que tornam uma obra de Anderson facilmente reconhecível, a começar pela trupe de actores famosos que o acompanham (Bill Murray à cabeça), passando pelo cuidado extremo, ou mesmo obsessivo, no pormenor, seja no décor, seja nos diálogos, seja ainda na banda sonora.
Grand Budapest Hotel é uma comédia andersoniana até à medula, com tudo o que de bom e de autocaricatural isso tenha.
Inspirada nas obras de Stefan Zweig, a acção principal passa-se nos anos 30 na imaginária República de Zubrowka e conta a história do superzelador Gustave H (um notável Ralph Fiennes), bon vivant e dedicadíssimo ao hotel (e em especial às vetustas hóspedes).
O destino do concierge e do Grand Budapest ficam traçados no dia em que a milionária Madame D. (Tilda Swinton) morre e aparece do nada o paquete Zero Moustafa (Tony Revolori).
Divertido, bonitinho, mas incapaz de espantar.
A Teoria de Tudo (por Alexandra Ho)
O extenso rol de indicações para prémios como os Globos de Ouro e os tão cobiçados Óscares sugerem que A Teoria de Tudo é um dos grandes filmes do ano. Não é!
A Teoria de Tudo – baseado no livro Viagem ao Infinito e que conta a história de amor e o casamento entre o físico e cosmólogo Stephen Hawking e a sua primeira mulher, Jane – é um daqueles filmes claramente valorizados pela indústria.
As razões parecem simples: além de recapitular a vida de uma das mais brilhantes mentes do planeta, que contra todas as adversidades explicou a origem do universo, o filme de James Marsh é despretensioso e escorreito, sem ceder à lágrima fácil, e suportado por duas boas interpretações, Eddie Redmayne como Hawking e Felicity Jones como Jane.
São os dois actores, aliás, que contrariam sempre o tédio que por vezes promete instalar-se durante as duas horas de projecção. Eles e uma realização competente, que ao fechar com frequência a câmara no rosto dos actores consegue transmitir de forma subtil mas eficaz a luta interior das personagens perante a situação limite que é viver-se (doente e companheira) com esclerose lateral amiotrófica, uma doença degenerativa sem cura.
Muito se tem falado da interpretação de Redmayne. A deterioração física que desempenha é notável, não negamos, mas depois não há muito mais profundidade para lá dessa mímica.
Ainda assim tudo indica que será Redmayne, que já ganhou o Globo de Ouro e o Screen Actors Guild Awards, quem vai levar para casa a estatueta dourada.
Boyhood (por Aisha Rahim)
Recordar a filmografia, algo irregular, de Richard Linklater antes de Boyhood é evocar sobretudo a trilogia de culto Antes do Amanhecer (1995), Antes do Anoitecer (2004) e Antes da Meia-Noite (2013). Cada um dos volumes é marcado pela ideia de tempo real – no primeiro, por exemplo, passamos (ficcionalmente) um e um só dia na companhia de dois jovens que se conhecem num comboio entre Budapeste e Viena e partem em caminhos diferentes na madrugada seguinte – mas no seu conjunto há uma continuidade cronológica que os atravessa – em Antes do Anoitecer passaram-se alguns anos e o casal reencontra-se em Paris, e na terceira fita, quem diria, estão casados, têm filhos e passam férias na Grécia. Não foram só as personagens a envelhecer, também os actores protagonistas (Ethan Hawke e Julie Delpy) ganharam rugas. “O tempo passa”, diz alguém em Boyhood.
Olhando para esse conjunto de filmes é difícil imaginar outro realizador e argumentista que não Linklater a conceber Boyhood: rodar uma ficção com os mesmos actores ao longo de doze anos, uma semana de filmagens por cada 365 dias. É na delicadeza com que assume esse dispositivo mais associado ao documentário que à ficção – o do tempo que passa – que reside a singularidade da sua obra mais recente, onde acompanhamos episodicamente a banalidade da vida de uma família americana. Estão lá as idiossincrasias de todas as famílias, mas também as da nação que tanto ama a Bíblia como as caçadeiras. Fazer os trabalhos de casa, ter uma namorada, escolher uma profissão, é a retrospecção possível do jovem protagonista (Ellar Coltrane). Casar, divorciar, ter filhos, vê-los partir, a da mãe da história (Patricia Arquette é a favorita para o Óscar de Melhor Actriz Secundária). “É só isto? Pensei que houvesse mais alguma coisa”, ouvimo-la às tantas dizer.
Não é por acaso que o argumento faz referências ao mandato de Bush e aos atentados de 11 de Setembro, que uma das personagens trauteie um single da cantora pop que explodia no final do século XX (a saber Britney Spears) ou que a banda-sonora inclua o hit de Kimbra mais rodado nas rádios em 2011 (“Somebody That I Used to Know”). Sem receios de se deixar datar, o filme de Linklater quer-se permeável ao tempo – não nos cabe a nós aproveitar o momento, “é o momento que nos aproveita” é outro dos diálogos-chave do filme. Produto ou não das circunstâncias, como Linklater disse terem sido os três tomos com que iniciámos este texto, uma coisa é certa: o realizador americano soube, com inteligência e a mais eficaz das simplicidades, deixar-se aproveitar pela última década. Se não sair vencedor da categoria de Melhor Filme na cerimónia da Academia de Hollywood (que o nomeou para seis Óscares), Boyhood já ganhou pelo menos o título de melhor filme da carreira de Linklater. Até ver, claro…
Whiplash – Nos Limites (por Aisha Rahim)
O que tem de especial a vida de um futuro baterista nos corredores de um Conservatório de Música para que seja impossível descolar o olho da segunda longa-metragem do também novato Damien Chazelle?
Grande vencedor do Festival de Sundance e nomeado para cinco Óscares, Whiplash – Nos Limites poderia ser um biopic sobre ícones do jazz como Buddy Rich ou Jo Jones – referências aliás recorrentes no filme – mas estamos em crer que se assim fosse ficaria aquém do que consegue ao colocar-nos na pele deste aluno anónimo, na idade de arranjar uma namorada, que tem de provar a si próprio preferir o caminho da genialidade ao da mediania.
É nesse devir que o argumento de Whiplash inteligentemente nos instala, construindo um duelo psicológico entre o imberbe protagonista (Milles Teller) e o temível mentor Lecter (J.K. Simmons).
Um jogo de tensão para lá do plausível que a montagem, pontilhada de planos de pormenor entre baterista e bateria e em constante diálogo com a banda sonora, não perde por um segundo.
Razão mais do que suficiente para valer a ida ao cinema.