Em 1979, o famoso Johnny Carson, anfitrião da 51.ª edição dos Prémios da Academia, sentiu-se na obrigação de fazer a seguinte declaração de princípios no número de abertura : «Que fique registado que sou a favor de mais índios e minorias nos filmes; sou contra poluir os oceanos; sou a favor de que cada nacionalidade tenha a sua pátria; sou contra matar focas bebés e sou a favor de salvar as baleias». A plateia percebeu e riu imenso.
Na cerimónia dos Óscares do passado domingo foi notória a quantidade de discursos motivacionais, políticos e de alerta de consciências proferidos por todos os que empunhavam a estatueta. Mas não é uma novidade. É antes um regresso. Os anos 70 – uma década muito politizada e activista em todo o hemisfério Norte – encontraram no palco dos Óscares uma tribuna para todos os que lá subiam declararem publicamente as causas que defendiam.
Em 1973, num dos momentos mais históricos e desconcertantes, Sacheen Littlefeather (Pequena Pena), uma apache presidente do National Native American Affirmative Comitee, a pedido de Marlon Brando – que estava nomeado por O Padrinho – subiu ao palco para recusar o Óscar de Melhor Actor. Num tom devastadoramente triste, Sacheen explicou que o actor lamentava não poder aceitar o prémio e que o fazia por causa do tratamento a que Hollywood durante décadas sujeitou os índios. Numa entrevista posterior, Brando deu largas à sua culpa de homem branco e explicou que se sentiu feliz por dar voz a uma minoria, vítima de clichés e abusos.
Em 1978, com Bob Hope a apresentar a cerimónia, Vanessa Redgrave recebeu o galardão de Melhor Actriz Secundária pelo seu papel em Julia e criticou a actuação de um grupo de «malfeitores sionistas» cujo comportamento era «um insulto à estatura de judeus em todo o mundo e à sua luta heróica contra o fascismo e opressão». Redgrave tinha sido alvo de manifestações de rua promovidas pela Jewish Defense League, na qual se queimaram fotografias da actriz que apoiava a causa da libertação dos territórios ocupados na Palestina. Da plateia ouviam-se assobios. Logo de seguida, o dramaturgo e vencedor de três Oscares de Melhor Argumento Original, Paddy Chayefsky, deu expressão ao que ia na cabeça de muita gente: «Estou farto até às orelhas de pessoas a explorar os prémios da Academia para difusão da sua propaganda».
Numa pequena investigação apresentada em vídeo na série Think Back do New York Times, o escritor Sam Tanenbaum explica como a cerimónia dos Óscares foi desde os anos 70 uma arena política. Por isso, o discurso de Johnny Carson parecia resumir bastante bem todo o activismo daquela gente que aproveitava a exposição mediática – já na altura a transmissão pela cadeia NBC representava 40 milhões de norte-americanos em directo.
No YouTube é fácil perceber como os actores de filmes, eles próprios muitas vezes incrivelmente politizados, fugiam ao guião desejado pela Academia. Numa fase em que ainda não havia passadeira vermelha e em que as actrizes levavam o melhor vestido que encontravam no roupeiro, o importante nos Óscares era pura e simplesmente o palco – na altura no Dorothy Chandler Pavilion. Exemplo de uso exímio do protagonismo para as massas foi Jane Fonda, quando recebeu o Óscar de Melhor Actriz por Coming Home, de Hal Ashby, em 1979, que acompanhou o discurso com linguagem gestual. Fê-lo, disse, para dar visibilidade aos «mais de quatro milhões de surdos».
O momento mais claramente anti-poder, numa cerimónia que é muitas vezes erradamente vista como fútil, foi em 2003 quando Michael Moore, ao receber o Óscar de Melhor Documentário pelo libelo antiliberalização das armas Bowling for Columbine, atacou o Presidente George W.Bush, perante uma plateia audivelmente dividida entre aplausos e assobios.
O discurso incendiário foi feito quatro dias após as tropas norte-americanas terem invadido o Iraque. «Vivemos um tempo em que tivemos uma eleição fictícia que elegeu um Presidente fictício . Vivemos um tempo em que um Presidente fictício nos envia para a guerra por motivos fictícios», gritou Moore.
Cerca de dez anos antes, em 1994, Tom Hanks aproveitou o momento em que foi receber a estatueta (pelo seu papel de homossexual vítima da SIDA em Filadélfia) para agradecer aos «dois melhores gays americanos» que conhecia, o professor de teatro e um colega. «Dois homens que tive a sorte de conhecer e de me terem influenciado numa muito tenra idade». Muito ousado e comovente, anos-luz antes de figuras reconhecidamente homossexuais como Ellen DeGeneres (em 2007 e 2014) ou o actor Neil Patrick Harris (em 2015) serem escolhidos para conduzir uma cerimónia.
Os direitos da comunidade LGBT voltariam à baila em 2009, quando Dustin Lance Black, premiado pelo melhor argumento por Milk – filme no qual Sean Penn dava corpo a Harvey Milk, o primeiro político norte-americano assumidamente gay – subiu a palco. «Se o Harvey não nos tivesse sido roubado há 30 anos, acho que ele queria que este prémio fosse dedicado a todos os miúdos gays e lésbicas por aí que têm sido inferiorizados pelas suas igrejas ou pelos seus Governos», disse. O também jovem argumentista assegurava que Deus ama todos. «E muito cedo, prometo, vão ter direitos iguais, em toda esta nossa grande nação», previu.
Antes da Vanity Fair
Por muito que os actores se esqueçam das suas próprias causas mal entrem na festa da Vanity Fair – que acontece logo a seguir à entrega dos prémios -, e por muito que os Óscares sejam eles próprios uma fogueira de vaidades, este ano notou-se uma tentativa séria de fazer um jogo diferente. Reese Witherspoon, vestida num elegante mas simples vestido Tom Ford, lançou a campanha no Twitter em que se desafiava a imprensa a fazer outras perguntas além da estafada 'O que está a vestir?' E, de facto, o que se passou no palco do Dolby Theatre foi qualquer coisa de fora do normal. Patricia Arquette, Melhor Actriz por Boyhood – e criadora da ONG Givelove, que se tem dedicado a criar estruturas sanitárias ecológicas em zonas devastadas como o Haiti – disse que estava na hora de lutar pelos direitos de cerca de metade da população mundial e dar-lhe salários iguais aos dos homens. Na plateia, Meryl Streep, que perdeu o prémio para Arquette, aplaudia de pé, erguendo muita gente com ela.
E houve de tudo: defesa de consciência sobre doenças, direitos dos imigrantes, das minorias e até do afecto. Eddie Redmayne defendeu mais apoios aos doentes de esclerose lateral amiotrófica, doença que paralisou e tornou quase incomunicável Stephen Hawking. Julianne Moore, que recriou a progressão da doença de Alzheimer numa mulher real em O Meu Nome é Alice, pediu visibilidade para a doença «para que se possa encontar uma cura». O mexicano Alejandro González Iñarritu, Prémio de Melhor Realizador (e também de Melhor Filme, por Birdman), pediu que «os imigrantes de hoje possam ser tratados com a mesma dignidade e respeito que os outros que chegaram antes e construíram esta incrível nação de imigrantes». Graham Moore, vencedor de Melhor Argumento Adaptado por Jogo da Imitação, inspirado na vida do homossexual Alain Touring, referiu que aos 16 anos tentou suicidar-se porque se sentia «estranho e diferente». Mas, disse, «agora estou aqui e gostaria de dizer aos que se sentem estranhos e diferentes: continuem assim e quando estiverem aqui que possam dizer o mesmo».
John Legend e o rapper Common, intérpretes da Melhor Canção Original, 'Glory', do filme Selma, proclamaram: «Hoje há mais negros encarcerados do que havia escravos em 1850». Common apelaria não só à defesa dos direitos dos negros e ao direito ao voto «novamente ameaçado», como à defesa da liberdade de expressão em todo o mundo em que ela se encontra em perigo.
A canção interpretada pelo elenco do filme em palco, e as lágrimas que escorriam na plateia, redimiram as acusações de racismo, prévias à cerimónia, pelo facto de entre os nomeados todos serem caucasianos (David Oyelowo, que interpreta Martin Luther King em Selma não foi, para muitos injustamente, nomeado).
A 'brancura' da cerimónia havia já sido ironizada por Neil Patrick Harris quando referiu a «whitest … sorry brightest night» ('a mais branca, desculpem, mais brilhante noite'). E as acusações seriam novamente apaziguadas com a simples presença de Cheryl Boone Isaacs, a primeira negra a presidir à Academia de Artes e Ciências Cinematográficas e a terceira mulher a ocupar o cargo.
'Liguem aos vossos pais'
Os cerca de 36 milhões de espectadores norte-americanos que viram a cerimónia de domingo em directo terão igualmente ficado boquiabertos com o facto de o prémio de Melhor Documentário ter ido parar às mãos de Laura Poitras por Citizenfour. Poitras faz parte do núcleo duro de pessoas que serviram de ponto de contacto com o Guardian para passar a informação de Edward Snowden, antigo funcionário da National Intelligence Agency (NSA) e que revelou que esta agência está a espiar e guardar dados de todos os cidadãos norte-americanos. Citizenfour é sobre isso.
Na cerimónia dos Óscares mais activista dos últimos tempos, o documentário vencedor põe em causa a Administração Obama por causa das preocupações em torno da segurança nacional. Se em 2013 a própria Michelle Obama anunciou Argo como vencedor do Óscar de Melhor Filme, a partir da Casa Branca, este ano a cerimónia descolou da Sala Oval. E os Óscares voltaram ao espírito de guerrilha suave dos anos 70 e também ao 'make love' da década anterior. «Liguem aos vossos pais. Ouçam o que eles têm para vos dizer», dizia J.K.Simmons, vencedor do Óscar de Melhor Actor Secundário. Ok, ok, malta do cinema, diria Johnny Carson, vamos fazer isso tudo e ainda vamos salvar o planeta.
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