Quando, em 2001, recebeu das mãos de Angelina Jolie o Óscar de Melhor Actor Secundário por Traffic – Ninguém Sai Ileso (2000), Benicio del Toro já tinha um currículo invejável, com prestações inesquecíveis em Os Suspeitos do Costume (1995), Funeral (1996) ou Snatch – Porcos e Diamantes (2000). Na década que se seguiria emprestou o seu carisma a personagens emblemáticos em 21 Gramas (2003), Che (2008) ou Jimmy P (2013). Tudo isso fruto dos ensinamentos colhidos no Actor’s Studio, escola de James Dean, Brando, Al Pacino ou Jane Fonda. Em Escobar: Paraíso Perdido, o porto-riquenho de 48 anos teve de engordar para vestir a pele do mais famoso traficante de droga de todos os tempos. O filme, acabado de chegar às salas de cinema portuguesas, é uma viagem ao mundo de um motorista que colecciona amizades e favores, acabando por converter-se num alcaide camarário amado por todos e, finalmente, no chefe de um cartel de droga que o tornou durante os loucos anos 80 num dos homens mais ricos do mundo segundo a revista Forbes. O homem de vícios requintados e públicas virtudes não se coibia de organizar festas com piñatas cheias de dinheiro oferecidas aos convivas ou de coleccionar animais exóticos nos seus três zoos.
Escobar: Paraíso Perdido baseia-se no livro do actor italiano Andrea di Stefano, que aqui se estreia na realização. Tudo terá partido de uma foto tirada numa das famosas festas de Escobar, em que se vê um surfista. Di Stefano inspirou-se nessa personagem anónima (interpretada por Josh Hutcherson) e construiu uma história à sua volta, levando-a a viver um romance com a filha de El Patrón, como era conhecido o traficante.
Diante de Benicio del Toro, prestes a ser homenageado no festival de San Sebastián, sentimos um estremecimento quando pela primeira vez o seu olhar se cruza com o nosso. Não passa nada – afinal ele até se revela um ser humano ternurento.
Recebe em San Sebastián um prémio de carreira. Não lhe parece um pouco surreal, visto que a sua carreira ainda vai a meio?
Sim, é surreal, mas é também uma imensa honra estar na lista dos meus colegas que receberam o prémio Donostia. É como pertencer à mesma família de Anthony Quinn, Robert Mitchum, Gregory Peck, Denzel Washington.
Mas talvez isso aconteça porque já tem uma enorme lista de personagens marcantes…
Sim, tenho muita sorte por trabalhar com os melhores do mundo. Grandes realizadores, excelentes actores.
Como é que lhe dão esses papéis?
Pago-lhes! Faço-lhes uma oferta que não podem recusar… [risos]
O papel de Pablo Escobar é tremendo. Pagou muito por ele?
Muito… Surpreende-me que ainda ninguém tivesse feito um filme sobre ele. Houve uma novela na Colômbia em 2012, a maior produção jamais feita naquele país. Chama-se Pablo Escobar: El Patrón del Mal.
Que imagem formou desta figura?
Baseei-me na personagem do Andrea di Stefano. E o mais fascinante é que a primeira impressão que teríamos dele talvez fosse positiva. Provavelmente até o conheceríamos numa festa, como sucede com a personagem do Josh Hutcherson, onde estaria acompanhado pela mulher e mostraria os seus dotes de cantor. É interessante conhecê-lo dessa forma e perceber como essa imagem iria mudar depois de sabermos qual o seu verdadeiro modo de vida.
Enquanto personificava este homem de família, conseguia abstrair desse lado obscuro?
Sim e não. Há uma cena em que ele fica a saber que um cão mordeu a personagem do Josh. Depois vem para o pátio e escreve o nome dos ‘responsáveis’. Neste caso, escrevo na mão, mas ele tinha um bloco onde fazia essas anotações. Ninguém queria estar naquela lista… Li isso em qualquer lado e achei interessante. Nesse sentido, não acho que seja possível separar os dois lados da personalidade. Ele era capaz de despedir-se da família e no momento seguinte mandar liquidar alguém. Por muitas histórias que se contem de Pablo Escobar não é possível separar o monstro do homem de família.
Na verdade ele era um homem de família, um pai extremoso, um cristão fervoroso…
E tudo é verdade!
Há um lado ‘suave’ aliado a aspectos mais negros que vimos em outras personagens suas. Podemos deduzir que lhe agrada esse tipo de nuances numa personagem?
Sendo hispânico compreendo bem a religião católica e a crença em Deus. No fundo, a religião é algo que nos liga na América Latina.
Andrea di Stefano, também autor do livro, tem aqui a sua primeira longa metragem. Foi salutar a colaboração entre ambos, sendo que você é um actor já com muita tarimba?
Para ser sincero, a primeira vez que o Andrea me contactou para que lesse o guião, eu não estava muito convencido. Na verdade nem o li e mantive-me um pouco afastado dessa ideia. Entretanto, o meu agente convenceu-me a ler o guião. E quando o fiz percebi que era uma versão ficcionada, embora u verdadeira, sobre a loucura de um homem. No fundo, a personagem de Josh gosta do Pablo até ao ponto em que percebe que também ele poderá ser morto. Isso pode ser uma metáfora para o Escobar na Colômbia. No início toda a gente gostava dele. Concorreu para cargos públicos. Isto até perceberem que era um traficante. Como gangster ele era o Godzilla. Acho que foi o maior gangster de todos os tempos. Diz-se que nenhum outro jamais teve tanto poder.
Mencionou Godzilla, mas eu lembro-me de O Padrinho. Parece inevitável até uma aproximação a esta figura, não acha?
Não tinha essa ideia premeditada, mas concordo que existe algo de Brando neste papel.
Ou melhor, de Corleone…
Sim, sim, claro. Não estava a tentar imitar, mas claro que sou um grande fã. Por acaso estudei com a mesma professora que o ensinou a ele, a Stella Adler. A ligação está justificada, ainda que não tenha sido consciente. Agora, é comum que a crítica mencione o nome de Brando sempre que um actor faz alguma coisa interessante. Li isso sobre muitos actores da minha geração. De Javier Bardem, passando por Philip Seymour Hoffman, Sean Penn, etc. Todos eles têm algo de Brando. Eu vejo isso como um elogio.
Talvez porque ele é o zénite de um certo de tipo de representação?
Sim, o Marlon Brando trouxe algo de inovador. Na história do cinema há actores incríveis. Desde o cinema mudo. O Paul Muni, que fez Scarface, o Homem da Cicatriz (1932), o primeiro filme de gangsters de sucesso. O Humphrey Bogart, o Clark Gable… Todos têm aquele ar ‘Brando’. Será que ao Brando disseram que imitava o Clark Gable ou o Humphrey Bogart? Ou o John Garfield? Todos eles vieram imediatamente antes do Brando. O John Garfield terá sido o primeiro actor do ‘método’, no sentido em que quebrou o modelo de representação de Hollywood. Mas há mais: o Al Pacino, o Jack Nicholson… E muitos da minha geração.
Investiu muito tempo a preparar a composição de Escobar?
Não tivemos muito tempo. De resto, não era um filme biográfico. E a minha nem é a personagem principal. Acho que tive três meses para me preparar. Comi mais pão e pizza [risos]… Tentei informar-me como era Escobar naquele período. Mas, na altura em que o filme começa, ele já é um homem bem-sucedido. Não vemos a viagem dele até esse ponto. Mas interessou-me essa parte. Ele era um tarefeiro que trabalhava para um tipo que era traficante, mas não de droga. Acho que trazia máquinas de lavar e roupas dos Estados Unidos. Escobar seria era um dos condutores e acabou por criar uma rede de pessoas que o ajudavam. Algo que mais tarde usaria para a droga. Ao fim e ao cabo acho que foi um talento perdido.
Disse antes que de início não estava interessado em ler o guião. O que o fez mudar de ideias?
Achava que iria ser um biopic. Isso iria demorar muito mais tempo. Primeiro teria de pesquisar toda a sua vida, depois tentar relacioná-la com o guião. E eu não tinha tempo para fazer tudo isso. Por outro lado, essa vertente biográfica interessava-me menos. Ao perceber que era uma abordagem diferente, mais na linha de um thriller, achei que poderia ser interessante.
Talvez por não querer entrar de novo na pele de uma personagem tão complexa como o Che Guevara do ambicioso filme em duas partes Che – A Guerrilha e Che – O Argentino (2008)?
Sim, esse foi um projecto imenso e desgastante.
O mais desgastante da sua carreira?
Possivelmente. Foi difícil por várias razões. Não é só a história do Che, mas de um país e de um tempo. Sendo americano foi difícil viajar para Cuba e recolher informação sobre um homem tão relevante. Foi difícil pelo tempo gasto para filmar aquelas quatro horas. Trata-se de um projecto tão diferente quão querido para mim.
Josh Hutcherson é um actor muito jovem e uma espécie de ídolo de adolescentes. Isso suscitou-lhe algumas reservas? Como foi trabalhar com ele?
Conheci o Josh muito antes deste filme, quando realizei uma curta para o projecto Sete Dias em Havana (2012). De certa forma, ele até foi uma das razões pelas quais decidi fazer o filme. É um tipo muito talentoso e muito verdadeiro. Capta bem o momento.