Há 27 anos era uma jovem de 18 que saía de Portugal pela primeira vez na vida. Das Caldas das Taipas mudou-se para Madrid, sozinha, mas com um objectivo definido: ser cantora lírica, apesar dos sacrifícios inerentes a esta escolha. Para trás ficava a criança a quem o avô pagava cinco tostões para cantar em casa e 'nascia' a maior soprano portuguesa da actualidade, que já actuou com Plácido Domingo e José Carreras.
No filme Pretty Woman: Um Sonho de Mulher, Richard Gere leva a personagem interpretada por Julia Roberts a ver La Traviata. Aquela mulher, uma prostituta de rua que nunca tinha assistido a uma ópera, termina a peça a chorar. O que acha que faz com que, mesmo quem nunca foi à ópera nem entende o que ali se diz, possa sentir-se emocionado?
Penso que é a veracidade. Cada um de nós, em palco, tem de ser verdadeiro com aquilo que sente e com aquilo que está a interpretar e a transmitir ao público. Se eu não sentir, o público não vai sentir. É preciso ser verdadeiro e transmitir sentimentos verdadeiros. A arte tem de ser espontânea e verdadeira, tal como é a reacção de uma pessoa quando vê algo que até pode não perceber bem, mas que lhe tirou o ar, que o deixou nu.
Diria que este Macbeth, que agora protagoniza no São Carlos, é uma boa ópera para um estreante?
Sem dúvida. É um texto de Shakespeare e música de Verdi, que é sempre um compositor atractivo. Não quero ser mal interpretada de que seja mais fácil, não é o caso. Mas para alguém sem conhecimento, se a levarmos a ouvir uma obra de Wagner, com certeza que vai custar mais a entrar. Em Verdi as melodias são mais imediatas, as histórias de amor e ódio, de paixão e morte, são entregues ao público de uma maneira que conquista. É fascinante ver como Lady Macbeth convence o marido a fazer o que ela quer. Uma pessoa vem pela primeira vez e fica perplexa. Claro que o ideal seria que os miúdos tivessem acesso à cultura desde que começam a sua instrução. E falo da cultura em geral e não apenas da música. Seria bom que as pessoas estivessem habituadas, que tivessem essa educação. Depois cada um faz as suas opções, mas é preciso ter o conhecimento para depois escolher. Porque é que é muito mais imediato assistir a um concerto de rock? Por que as pessoas estão habituadas desde miúdos a ouvirem rock e pop. Muitas pessoas nunca sequer tentam assistir a uma ópera.
Ainda existem esses anticorpos?
É claro que mudou muito. Os jovens de hoje têm mais interesse pela ópera. As coisas vão mudando, ainda que lentamente.
Qual foi a reacção mais marcante que recebeu do público?
Nunca vou esquecer a reacção do público americano na minha estreia no Metropolitan, com La Fanciulla del West, em que fazia de Mimi. Não tinha tido acesso ao palco antes do espectáculo, apenas tinha feito ensaios de sala. Ainda assim, em palco, tive de subir a um cavalo – coisa que nunca tinha feito na vida. E tive de disparar uma espingarda – coisa que também nunca tinha feito. Apesar de todas estas preocupações cénicas, quando cheguei ao final, encontrei a orquestra toda a aplaudir e o público do Metropolitan todo de pé. Foi das situações mais eléctricas que experimentei na vida. Sentir o feedback do público é o que justifica viver desta profissão tão difícil e sacrificante.
Esse carinho do público sente-se menos em Portugal?
Em Portugal o público da ópera sabe quem sou e acarinha-me. Mas, em geral, o português é um bocadinho reticente com o que é português. Não falo por mim porque, a partir do momento em que se cantou no Metropolitan ou no Scala de Milão, é como se tivesse sido benzido pelo Papa. Mas aqueles que estão a começar também precisam do carinho e precisam de ser apoiados. O público, quando vem, até vem de alma aberta, mas é preciso que haja quem de direito que permita que os nossos jovens cheguem ao palco. E que um jovem português nunca seja passado para segundo plano só porque outro tem um nome estrangeiro. Isso acontece e continua a acontecer. Somos um povo cruel consigo próprio. O que vem de fora é sempre bom. Além disto, somos um bocadinho 'invejosos'. É como se o êxito de um fosse diluir o êxito do outro. Isto é um engano total e absoluto! A arte não entra em competição. A maior satisfação que posso encontrar é andar pelo mundo fora e ouvir falar nos méritos dos portugueses! É tão bonito saber que a nossa nação tem a mesma capacidade que as outras, mesmo sendo tão pequenina. Temos de aprender a valorizar aquilo que temos.
Foi com essa consciência das dificuldades que iria ter em Portugal que tomou a decisão de sair do país com 18 anos?
Na altura não foi uma coisa muito consciente. A minha partida deveu-se ao facto de eu querer saber mais e dedicar-me a isto. E saber que tinha feito cá aquilo que havia para fazer. Sabia que não tinha mais para fazer aqui e portanto tinha de ir à procura. Tinha de estar num meio onde existissem muitos teatros e grandes cantores, um meio onde pudesse ter contacto com agentes e movimentar-me com facilidade. Mas para uma jovem de 18 anos, do Norte, que nunca tinha saído de Portugal, não foi fácil. Só que eu já sentia aqui dentro algo que me fazia adivinhar que valia para esta profissão. Claro que ainda estava muita coisa por aprender – e continua a estar! – e por provar, mas já cá estava aquilo que era visceral: o querer saber mais, o querer chegar mais longe… E quando digo isto não era chegar ao Scala ou ao Metropolitan, mas fazer esta ou aquela ópera.
Lembra-se do momento em que percebeu que sabia e gostava de cantar ópera?
A minha primeira lembrança é justamente com cinco ou seis anos, com o meu avô materno. A minha família paterna é ligada à música, mas o meu avô materno é que me pagava cinco tostões para eu cantar nos serões de Inverno. Punha-me em cima de um banquinho e dizia-me para cantar porque achava que eu cantava bem. Subir a esse banquinho era uma espécie de subir ao palco… Desde pequenina que sentia uma sensibilidade para a música erudita. Fiz concerto, recital e ópera. Mas também gosto de fado, de jazz e de música popular.
Nunca pensou cantar fado?
Um cantor lírico a cantar fado é uma adulteração que o fado não merece. Mas penso que quem é português tem de gostar de fado. Temos de sentir aquilo que é nosso e o fado é nostalgia, é amor, é o sentir da alma portuguesa. O fado somos nós.
Quais as ligações da sua família à música?
No Norte havia muita ligação às bandas e na banda da minha terra tocava o meu pai, os meus tios, os meus primos… Ao longo dos anos todos se formaram e hoje em dia todos vivem da música: são professores de piano, de violino, de clarinete, o meu pai era trompetista… Desde miúda que me recordo de ouvir coisas como O Barbeiro de Sevilha. Tudo isto na banda. Estando num país onde o ensino não põe as crianças, desde pequenas, em contacto com estas áreas, acabavam por ser as bandas a fazer esse serviço.
Estava afastada das grandes metrópoles?
Completamente! Estava nas Caldas das Taipas, a sete quilómetros de Guimarães e a 14 de Braga.
O facto de viver fora de uma grande cidade e já rodeada por esse tipo de música fez que crescesse mais circunspecta?
Fui uma maria-rapaz, gostava muito de brincar e de sair com os meus colegas. Depois veio a fase em que toquei na orquestra da juventude e fiz música de câmara – porque também sou violinista, ainda antes de ser cantora. Tive uma meninice e adolescência com muito boas recordações.
Chegou a passar pela fase de ouvir rock?
Não muito. Nunca fui muito para aí virada. Mas ainda no outro dia fiz um concerto de beneficência para a Let's Help, na MEO Arena, onde esteve o Jorge Palma, o Camané, os Xutos e Pontapés e eu. Essa mistura foi engraçadíssima! A seguir a cantar, mudei de roupa e fui assistir aos outros artistas. A música é música no amplo sentido da palavra e a distinção que deve haver é se é boa ou má. Mas lembro-me que, ao crescer, os meus amigos não ouviam as mesmas coisas que eu. Eles gostavam de rock e de ir para Vilar de Mouros. Aliás, eu cheguei a ir a Vilar de Mouros!
Não a tratavam como uma 'ave rara'?
Não, não! Porque acho que, na verdade, não o era. Não é que agora seja uma ave rara, mas a verdade é que agora sou um bocadinho mais, mas é porque tenho de me precaver de muitas coisas. Não posso ir para ambientes onde as pessoas estão a fumar ou onde há música altíssima porque saio completamente rouca. Na altura não tinha estas preocupações. Fazia a vida normal de uma adolescente.
Que universo encontrou no Conservatório de Braga?
Foi onde comecei a perceber matematicamente a linguagem musical e a ter conhecimento da história da música, da acústica, da composição e da colocação vocal. No Conservatório comecei a ganhar as bases para depois poder abandonar-me à sensibilidade. A sensibilidade ajuda muito, mas é preciso ter um domínio daquilo que se faz porque temos um instrumento que está dentro de nós e é muito frágil.
Como é que a sua família recebeu a sua escolha de carreira e a mudança para Madrid, ainda tão jovem?
Tinha perdido o meu pai aos 13 anos. A minha mãe ficou viúva aos 36 anos e eu era a mais velha de três irmãos. De repente digo que vou ser cantora e poucos anos depois que tinha concorrido a uma bolsa e ia para fora. A minha mãe ficou um bocadinho em estado de choque, mas nunca me disse que não ia. Pelo contrário. Fui sempre respeitada e ajudada, apesar de saber que teria de vencer por mim própria. Qualquer miúdo ou miúda que vai para o estrangeiro para se dedicar à arte tem uma vida complicadíssima porque normalmente os pais não podem pagar estudos, livros, casa, dia-a-dia. Mas eu fui privilegiada porque tive uma bolsa da Gulbenkian e pude estudar quatro anos e depois ainda estive mais um ano com uma bolsa do Ministério dos Negócios Estrangeiros de Espanha. Depois do Conservatório cá, licenciei-me na Escola Superior de Canto de Madrid.
A menina que nunca tinha saído de Portugal mete-se num avião…
Mete-se num comboio! A primeira vez que fui, fui de comboio, com várias malas e todos os apetrechos que a minha mãe me pôs na mala porque eu ia lá ter casa e ela achava que ia precisar dessas coisas e não podia andar a comprar tudo em Espanha. Ia carregadíssima.
O que recorda das longas horas de viagem?
Recordo uma despedida muito, muito, muito, muito triste. É por isso que hoje em dia não me despeço de maneira muito emocional, só digo 'Até logo'. Foi muito difícil. A minha mãe e os meus irmãos ficavam sós. Eu nunca tinha tido um afastamento assim da família e portanto foi muito complicado. Lembro-me que, depois daquela despedida, as horas de viagem dentro do comboio tornaram-se o dobro ou o triplo. E depois só pensava que ia chegar a Madrid e não sabia o que ia encontrar. Já tinha a bolsa, mas ainda não tinha a garantia se entrava na escola que queria, ainda precisava de prestar provas.
E já tinha casa?
Não, fui para uma pensão. Tinha um amigo, que já faleceu, o violinista Vitorino Gomes, que por sua vez era amigo de um espanhol, Manuel Villuendas, que tinha sido concertino na Orquestra Gulbenkian, e que falou com a esposa e disse que ia para Madrid uma amiga jovem que precisava de estar uns dias numa pensão, até encontrar casa, mas que teria de ser uma pensão para uma 'señorita deciente'. A senhora foi muito simpática, foi-me receber à estação, e tratou de arranjar um sítio onde fiquei não chegou a um mês. Fiz a prova, entrei na escola e depressa aluguei uma casa com outros três músicos.
E as saudades?
Era difícil quando ligava, mas estava a fazer aquilo de que gostava e por isso prevalecia o espírito de luta. Além disto, vinha sempre que possível. E estava a descobrir Madrid, que é uma cidade cosmopolita e aberta, fiz amigos com muita facilidade, a escola tinha tudo o que um cantor pode imaginar: línguas, fonética, palco, esgrima… Estava o dia inteiro a fazer ópera e nas horas que sobravam ainda estudava violino. Estava completamente ocupada.
Nos anos em Madrid a estudar a bolsa era suficiente ou teve outros trabalhos?
Não, graças a Deus foi suficiente. Lembro-me perfeitamente que tinha 75 mil pesetas por mês e dava para tudo. Depois começaram a aparecer as primeiras experiências de trabalho e era mais algum dinheiro que tinha. Não precisei de fazer de babysitter ou de ir para o McDonalds, apesar de achar que é algo absolutamente louvável. Acho que devemos fazer tudo o que for necessário para alcançarmos os nossos sonhos, mas eu não precisei.
Conseguiu não ceder à boémia de Madrid?
Houve dias em que eu e os meus amigos decidíamos que íamos divertir-nos. E íamos.
Mas quando saía, tinha sempre um 'grilinho falante' a dizer que tinha de ir para casa?
Sim, absolutamente. E para ter cuidado com o frio e com as bebidas frescas. E se tivesse aula às 9h no dia seguinte nem ia. Ou jantava, mas já nem ia beber o copo.
Isso fez com que nunca se tenha libertado totalmente?
Nunca. São as vicissitudes desta profissão, é o preço a pagar por estar sempre 'em directo'.
É uma profissão que é uma prisão?
Não é uma prisão, mas ser soprano é como um sacerdócio. Mas estou presa porque quero.
E sem arrependimentos?
… Algumas vezes tenho alguns arrependimentos. A vida não é só cantar, não é só música. A vida também são outras coisas e, às vezes, tenho vontade de poder estar na vida de uma maneira mais relaxada. Poder, por exemplo, dizer que pego em mim e vou para a neve sem me importar com nada.
Tem sempre de pensar em tudo, até no destino de férias, porque o seu instrumento de trabalho, a sua voz, é muito frágil?
Sim, e também é por isso que nos chamam divos. Não está só associado à postura, mas também à fragilidade que é ser cantor e nunca ver o meu instrumento. Todos os dias me deito sem saber como é que o meu instrumento vai amanhecer no dia seguinte. Nunca sabemos se vamos acordar em condições de trabalhar, ou não.
Isso deixa-a constantemente em pânico?
Sim, o medo cénico nunca desaparece, mas habituamo-nos a controlá-lo. No outro dia cheguei a Toulouse, para fazer o Tristão e Isolda, e estava com uma gripe tremenda. A minha sorte é que isto aconteceu no princípio dos ensaios. Mas a minha colega de trabalho ficou doente quando já estávamos com as récitas. Um dia cheguei e ela mal falava. A propósito disso estivemos as duas a conversar que não há nada mais trágico do que amanhecer no dia de uma récita e estar doente. É que se for uns dias antes ainda há a hipótese de sermos substituídas…
Mas tirando esse medo cénico, há um outro medo que é constante e que é o medo de um dia, pura e simplesmente, a voz acabar?
Esse medo é menor. Primeiro porque trabalho todos os dias para que a minha voz seja o mais longeva possível e que esteja nas melhores condições o maior tempo possível. Depois porque sou consciente de que tudo começa e tudo acaba. Desde o princípio, tive de ter consciência de que, assim como houve o dia em que comecei, haverá o dia em que acabo. É difícil, claro, mas temos de viver com essa noção.
Os cuidados com a voz permitem-lhe algo tão banal como cantarolar no banho?
Sim! Principalmente para ver se a voz ainda está lá! [risos] A primeira coisa que um cantor faz quando acorda é começar a fazer vocalizos para ver se a voz ainda está lá.
E o que canta no duche?
Depende do dia. Gosto imenso da música popular do Norte. E canções da minha infância. Ou música brasileira, que esteve muito presente na minha adolescência. Canto o que me sai. E às vezes invento.
Quando foi para Madrid, estava longe de imaginar que ia ficar por lá?
Não fui com a ideia de ficar. Mas fui com uma ideia muito aberta de que o que viesse, vinha.
Entretanto passaram 27 anos. Madrid é a sua casa?
Tenho casa em Madrid. Portugal é o meu país, mas Espanha também. Não posso dizer o contrário, seria muito injusto. Sinto-me bem lá, tenho grandes amigos em Madrid, é uma cidade de que gosto e que me deu muito. Madrid é uma cidade onde cresci muito. Sou hoje a soma daquela menina que cantava em cima de um banco, que depois foi para o Conservatório e daí para Madrid. Tenho uma postura diferente por ter vivido situações que não teria vivido se não tivesse saído das Caldas das Taipas. Essas situações fizeram de mim aquilo que sou hoje. Tal como o facto de viajar pelo mundo todo e lidar com pessoas de religiões e raças diferentes. Isso fez com que tivesse uma mentalidade mais aberta e fosse mais flexível e permissiva.
E menos diva?
Sim. Pensar que as coisas não têm de ser só como eu gosto, perceber que há outras realidades e que é belo confrontar as realidades.
Apesar de a sua base ser Madrid, a verdade é que nem aí passa muito tempo, não é?
Ando sempre de um lado para o outro. Nos últimos três meses, por exemplo, andei entre Lisboa, Madrid, Castelo Branco – onde tenho um projecto no Politécnico – e estive um mês e meio em Toulouse. Depois deste Macbeth vou de imediato para Telavive, depois vou a Berlim e depois para Oviedo… E há pouco tempo estive em Pequim. Tive de ganhar a capacidade de me adaptar, de viver com malas atrás, de ter sempre o computador para usar o Skype para ver os mais queridos que me dão equilíbrio. Temos de perceber que há sempre um preço a pagar na vida.
Mas sente que é recompensada financeiramente? Ganha-se muito dinheiro a cantar ópera ao seu nível?
Não ao ponto de justificar estar no fio da navalha todos os dias. Nada paga esse preço. Agora, evidentemente que, quando se consegue atingir um determinado patamar, pode-se viver bem. Mas também é preciso pensar que é uma profissão que, de um dia para o outro, pode deixar de existir.
Quando está fora de casa consegue fazer uma vida normal?
Tento. Por exemplo, sempre que fico períodos mais longos no mesmo sítio, prefiro ter um apartamento do que ir para um hotel. Assim posso ir às compras, fazer a minha própria comida e seguir a minha dieta. Todos os dias tomar pequeno-almoço, almoço e jantar em restaurantes é muito difícil.
Disse que era importante manter a sua dieta. Durante anos havia a ideia de que as cantoras de ópera eram grandes pois assim cantavam melhor.
Isso é uma imagem do passado. Devemos ter o peso que nos permite estar fortes para cantarmos quatro horas e meia seguidas. Isto sem falar do período de maquilhagem e guarda-roupa. No total podem ser oito horas de récita. É muito duro.
Mas sente que também na ópera a imagem é importante?
Sim. E a verdade é que é complicado pensar, por exemplo, numa Violetta de La Traviata, que morre tísica, e vê-la ser interpretada por uma senhora grande. Tem de haver veracidade em palco, temos de conseguir imaginar que aquela cantora é aquela personagem. A imagem também é importante para essa veracidade. Mas é bom não cair em extremos. Não precisamos de ter 86-60-86, mas dizer que é preciso ser gorda para se cantar bem também não é verdade.
Uma soprano pode emocionar-se?
Pode. Mas às vezes não deve. A mim já me aconteceu. Já chorei muitas vezes em palco. Ainda no outro dia, em mais um Tristão e Isolda, nem sei porquê. No final até me perguntaram se eu estava bem, mas eu nem sequer estava a dar conta que me caíam as lágrimas. É uma coisa do momento.
Chora mais facilmente no palco do que fora dele?
Não. Sou muito chorona. Mas também me zango e aí levanto a voz. Uma discussão comigo pode assustar…
Já trabalhou com todas as super-estrelas do canto lírico. Plácido Domingo foi o que mais a marcou?
Há várias pessoas que me marcaram, mas não posso nunca deixar de falar do Plácido. É uma pessoa extremamente generosa, com quem me cruzei a primeira vez em 1997, na estreia mundial da ópera Divinas Palavras, na reinauguração do Teatro Real, em Madrid. Ele era o tenor protagonista e eu era a soprano protagonista. Eu era uma cantora em início de carreira, completamente deslumbrada e nervosa por cantar com ele. Encontrei um grande artista, mas essencialmente um grande ser humano e uma pessoa muito normal, um colega que dá a mão aos outros. Logo depois ele convida-me para a Ópera de Washington para fazer Sly, com o Carreras. Depois fiz essa mesma peça com o Plácido, em Roma. E de seguida fizemos Le Cid, de Massenet, em Sevilha e em Washington. Foi extremamente importante ele ter acreditado em mim e eu ter podido aprender com ele. É um homem com quem me entendi e que sempre me fascinou, não só pela voz, mas também pela generosidade, pela maneira como se lembra sempre do nome de toda a gente.
Lembra-se da primeira vez que subiu ao palco?
Sim. Foi para fazer a Frasquita, da Carmen, cá em Portugal, no mesmo ano em que parti para Madrid. Ainda não era profissional, mas foi essa a minha estreia. Foi a minha família toda ao Coliseu do Porto para me ver. Ainda hoje vêm sempre que é possível.
Dá por si a pensar que o seu pai, músico e melómano, não chegou a vê-la cantar?
Sim… [silêncio] Sempre que saio ao palco, saio com ele. Esta carreira é a carreira que eu escolhi, mas sei que vem dele e sei que a continuo a fazer com a tenacidade e a força que é necessária porque ele está por detrás de mim. Antes de entrar em palco benzo-me sempre e é nele que penso. O meu pai é o meu guia, a minha protecção.
É católica?
Sim, sou. Fui baptizada, mas não sou uma católica de frequentar a igreja. Há coisas com as quais estou mais de acordo e outras menos, mas tenho um sentimento cristão e católico. Acho que a fé é algo de que todo o ser humano necessita para acreditar nas pessoas, para acreditar na possibilidade de vencer e ultrapassar os problemas, as crises, as doenças… Sinto-me uma afortunada e por isso dou graças a Deus todos os dias.
Já disse que a vida não pode ser só cantar. Sabe o que gostaria de fazer quando deixar os palcos?
Gosto muito de tudo o que tenha a ver com ensinar, mas também com flores e decoração. Não me aborrece nada estar em casa a arrumar. Para espairecer as minhas neuras tento equilibrar a minha vida com coisas muito normais, coisas do quotidiano. Para manter os pés no chão.
E imagina-se a regressar a Portugal?
Sim. Tenho casa em Lisboa e a família no Norte. Agora já venho muitas vezes a Portugal. Esse será, de certeza, o meu ponto final [ri-se, enquanto olha para o namorado, que anui]. Quando somos crianças precisamos muito da nossa entourage e à medida que os anos vão passando, vamos voltando a aproximarmo-nos do nosso ponto de partida. Como os espanhóis costumam dizer, 'la cabra tira al monte'.