Esta semana, isso é mais verdade do que nunca, porque o TNSJ aproveitou o embalo do Dia Mundial do Teatro – que se assinalou ontem -, para alargar as celebrações a sete dias, com oficinas, masterclasses e não só. O actor João Reis fez esta quarta-feira uma visita guiada ao edifício e hoje é a vez do director artístico Nuno Carinhas. Porém, começamos o percurso pelo local onde se cuida do guarda-roupa e adereços. Aqui, quase tudo é prata da casa e sai das mãos de um grupo de sete pessoas, lideradas por Elisabete Leão.
“No primeiro ensaio com roupa só estamos atentas aos pormenores: aquela bainha torta, a etiqueta no sapato, o actor que não tem o chapéu direito na cabeça. Na estreia estamos sempre nervosas e emocionadas, mas ainda assim dá vontade de ir lá arranjar qualquer coisinha”, descreve a responsável, que lembra que o trabalho do seu departamento se prolonga noite dentro. Quando os actores têm necessidade de mudanças de roupa rápidas, é necessário prestar assistência. E, no dia seguinte, é preciso lavar, passar e voltar a deixar tudo pronto para a próxima sessão.
O prédio onde a equipa trabalha, a dois passos do TNSJ, tem três andares, que incluem sala de provas, lavandaria e um grande armazém, em que há peças já com 20 anos. Muitas delas são emprestadas a escolas de teatro e companhias mais pequenas, o que exige uma grande organização. Mas nem todo o rigor do mundo pode evitar sobressaltos como o que Nazaré Fernandes viveu em UBUs, em 2005. O fecho-ecler do fato gigante de João Reis – que o actor só queria vestir em cima da hora, devido ao calor – teimava em não correr. “Ele dizia-me para ter calma, mas só me davam calores. Não podia pôr alfinetes, porque ele rebolava na peça e ia-se magoar. Acho que nesses momentos se ganha umas brancas e perde anos de vida”, descreve. Tudo ficou resolvido in extremis, com alfinetes de dama e fita gaffe.
Teatro de cara lavada
Voltemos à casa mãe. As visitas que dantes aconteciam apenas por marcação, nomeadamente de escolas, ocorrem agora de terça-feira a sábado, às 12h30. Esta foi uma das formas que a administração encontrou para rentabilizar o restauro da fachada do edifício – projectado pelo arquitecto Marques da Silva e inaugurado em 1920 -, que esteve rodeado de andaimes durante oito anos, até Setembro de 2014. Mesmo assim, ganhou em 2012 o estatuto de monumento nacional. “Queremos angariar novos públicos e fidelizar os que já temos, pelo que as visitas agora são feitas com tradução em inglês, francês e espanhol. Os turistas estrangeiros na Baixa são em fluxo considerável, por isso também quase todos os espectáculos são legendados em inglês”, explica ao SOL Francisca Carneiro Fernandes, presidente do conselho de administração.
Os números não são até agora muito impressivos (cerca de 300 visitas em três meses), mas o objectivo primordial é mostrar abertura à sociedade. Acompanhámos uma dessas visitas, que inclui o acesso a áreas fechadas ao público, como o telhado e a teia, ou seja, o sistema de varas que sustenta e controla a posição de cortinas e outros objectos suspensos no palco. Do terraço, é possível observar-se o centro do Porto e Vila Nova de Gaia; na teia, 20 metros acima do palco, a sensação de vertigem não é menor. A complexidade técnica de um teatro de primeira grandeza é superior ao que a maioria dos visitantes prevê: pode-se, por exemplo, subir uma cortina de enormes dimensões sem ter de a enrolar, num processo controlado pelo maquinista, em contacto com o director de cena, que dá ordens para que todos os elementos entrem no momento certo.
Desce-se ao palco e observa-se as marcações dos actores no chão, a diferentes cores. Como nota Nuno Carinhas, que interceptou a visita, a luz está programada para locais específicos e os protagonistas “não podem parar um metro ao lado”. “Cada cena é como olhar para um quadro ou uma fotografia que tem uma certa organização”, explica o encenador aos visitantes, em que se inclui Emília Faria, que, aos 58 anos revive memórias de infância: “Já actuei neste palco. Era aqui que tinham lugar os espectáculos do meu colégio, o Cortiço de Gaia. Recordo-me dos ensaios gerais, de correr por estes corredores, de entrar nos camarotes…”.
A sala principal – quase barroca e tão monumental como envolvente, muito devido à disposição em ferradura – é um dos pontos altos do percurso, além do salão nobre, parte do qual deveria ter sido a sala privada do Rei, não tivesse a monarquia caído em 1910, a tempo de se alterar o projecto inaugurado dez anos depois. Dois níveis abaixo do palco há uma oficina de serralharia e carpintaria e ainda mais abaixo um gerador e um reservatório de água. Quem diria que, durante cerca de 60 anos – até à compra pelo Estado, em 1992 – apenas passavam aqui filmes?
Os rituais antes do palco
Para evitar qualquer contratempo, Fernando Mora Ramos chega ao TNSJ por volta das 18h30, quando apenas entra em cena às 21h00. Os rituais do também director do Teatro da Rainha implicam “cortar com o mundo” pelo menos meia hora antes do início do espectáculo, para o qual está pronto uma hora antes. Tem no camarim um tapete para alguns exercícios. “É mais um adormecimento, uma ginástica suave, não sou muito dessas coisas de me pôr aos pinotes. Tenho é de estar descansado e descontraído. Nestas coisas do teatro, o exercício físico não é uma coisa muito conveniente, pelo contrário”, explica. Isso apesar de “o sacana do camião do lixo” parar mesmo à janela do camarim todos os dias, mesmo antes da entrada em palco.
Mora Ramos chega-se ao armário e mostra os figurinos e os adereços. O actor não tem propriamente uma lista para aquilo com que tem de entrar em palco e há sempre o risco de se esquecer de algo, o que “dá cabo de tudo”, mesmo que seja “uma coisa pequena”. “Isso abala o resto. Ficas a pensar 'que raio fiz para me esquecer' e zangado contigo próprio”, revela. O que não é bom para quem tem de debitar páginas e páginas de texto que, mais do que decoradas, têm de se “saber de coração, estar metidas no músculo cardíaco”.
E jantar? “Só um amador come antes do espectáculo”, garante Fernando Mora Ramos, que por volta das 18h30 recorre a “uma sopa e uma sanduíche” para confortar o estômago. “Mas há quem não tenha esse problema e enfie batatas fritas com ketchup. Se fizesse isso morria”. A comida tem mais que ver com o teatro e as salas de espectáculo do que parece. Nos primórdios do TNSJ, por entre longas récitas, circulava comida pelos camarotes e, se o público não gostava do que estava a ver, alguma dela podia mesmo acabar no palco. Conta-se até a história de uma perna de borrego arremessada a uma cantora que não estaria nos seus melhores dias.
Terminado o espectáculo, é tempo de cear. “Vou beber o meu copo de tinto à casa Java, aqui mesmo em frente. Com a companhia de colegas”, conta o actor. No entanto, o hábito já não é tão forte como no passado: “A malta de Lisboa ia muito à cervejaria Trindade ou ao Snob, mas isso agora já não existe”. O que continua a ser regra é o nervoso miudinho dos dias de estreia, como reconhece Francisca Carneiro Fernandes: “Há a consciência de que, desde o pessoal da bilheteira ao contabilista, estamos a trabalhar para o que se faz no palco. Há pequenos rituais que cumpro, como ir lá abaixo cumprimentar os actores e desejar merda e deixar um cartão de mimo ao encenador. Entramos às 8h30 e saímos às 2h00, mas é o culminar de meses de preparação”. Da próxima vez que for ao teatro, é provável que olhe para o palco apenas como a ponta de um icebergue: no caso do TNSJ, são 87 funcionários, além dos actores, a zelar para que tudo saia perfeito.