Manoel de Oliveira: ‘A eternidade é parada’

   

O SOL entrevistou Manoel de Oliveira, um dos mais conceituados realizadores portugueses, em 2007. No dia da sua morte, republicamos a entrevista na íntegra:

Manoel de Oliveira completa 99 anos na próxima quarta-feira e no seu último filme Cristóvão Colombo – O Enigma, também faz de actor. O realizador viaja pelo tempo e lamenta não ter dinheiro para ajudar os carenciados e fazer muitos mais filmes

Diz que hoje se fala muito na sua idade, mas não há como evitá-lo. A um ano de completar um século de vida, e a um mês da estreia do seu filme Cristóvão Colombo – O Enigma, como se sente o Manoel de Oliveira? Acha que é altura de olhar para trás e avaliar a sua obra ou prefere encarar o futuro e as histórias que ainda lhe apetece contar?

Não há hoje sem ontem. E a nossa bagagem vem de ontem, nunca de hoje, muito menos de amanhã. Essa bagagem é a nossa história, que se baseia na memória, porque sem memória não somos absolutamente nada. A memória é fundamental. O que é hoje novo, vai ser antigo, como o antigo foi novo. Quando foi novo teve uma certa evolução, mas o que fica é o peneirar do trigo e do joio. Esta lição é proveitosa se continuarmos no hoje.

Em todo o caso, mantém uma óptima forma física e uma presença intelectual invejável. O segredo está na sua dedicação ao trabalho, aos seus filmes?

Não sei. Sabe que o viver com saúde e prolongadamente não é mérito do próprio, é um capricho do destino. Aquilo que eu faço, bom ou mau, é mérito do próprio. O futuro é sempre uma incógnita. Não sabemos se morremos amanhã ou ainda hoje. Por isso, eu entendo que um dos deveres da governação é a educação. E depois a maternidade, porque só a maternidade permite a continuidade da espécie.

Isso quer dizer que não tem nenhum cuidado especial de saúde?

Não, quer dizer que não como uma coisa que me faz mal, ou evito. Deixei de fumar há 50 anos – fumei durante 30 e tal.

O seu último filme Cristóvão Colombo – O Enigma, pelo menos tal como o Manoel de Oliveira o expõe, parece uma coisa muito simples. Sem dramas e sem discussões.

Nem mais. A questão dramática que muitos filmes exploram é perversa. O título é justamente Cristóvão Colombo – O Enigma. Porquê? Porque ele é italiano para os italianos, espanhol para os espanhóis e agora português para os portugueses. O que mais me convence da sua nacionalidade portuguesa é justamente o facto de ele ter nascido na aldeia de Cuba. Era filho de uma personalidade conhecida na corte, fruto de um amor ilícito e teve de se esconder. Quando chegou às Antilhas e deu com a maior ilha deu-lhe o nome da terra onde tinha nascido – Cuba. Ora, não há no mundo duas Cubas, ou melhor, não há senão duas Cubas – a do Alentejo e a do Fidel Castro.

Que papel tem a sua presença no filme, não só como português, como realizador, mas também como actor?

O que quis foi seguir o itinerário do autor Manuel Luciano da Silva e da sua mulher. A ideia base é essa. Passei muitos anos a fazer férias em Porto Santo e fui várias vezes a casa de Cristóvão Colombo, onde ele viveu muitos anos antes de se oferecer a Espanha para fazer a viagem para a América.

Em todo o caso, o Manoel de Oliveira e a sua mulher embarcaram também nessa aventura…

… não embarcámos, pediram-nos para participar.

Pediram-lhes? Foram os produtores?

Sim, foi o produtor e o produtor executivo que nos pediram. Aceitámos com alguma renitência. Queriam encontrar actores que correspondessem à fisionomia das personagens 40 anos depois. Ora, eu pareço-me com o meu neto (Ricardo Trêpa). Mas o filme foi muito difícil. Se não fosse a ajuda da Fundação Gulbenkian não sei se o filme teria sido feito. Era um orçamento extremamente apertado e essa escolha também representava uma economia muito grande, porque eu e a minha mulher íamos sempre. Íamos à América e depois a Porto Santo, portanto poupava duas viagens e duas estadias.

Mas acabou por ser uma boa e surpreendente escolha.

Fomos um pouco contrariados, mas lá fomos. Está feito. Dizem que não estamos mal. Eu não gosto muito de ver porque o que me custava mais era não poder ver o que estava a fazer, não podia estar atrás da câmara.

Falava da memória e de que é preciso olhar para trás, queria pedir-lhe para recuar no tempo até onde a memória lhe permita.

Depende das circunstâncias, depende das situações.

Da sua infância, por exemplo, do que se lembra?

Lembro-me que era muito traquina. Subia pelos canos das águas, às vezes até com o perigo de cair. Corria, brincava. Sabe, era um tempo feliz. A ideia de felicidade não se vive. O momento de felicidade só é reconhecido mais tarde. Naquele tempo eu era jovem, um puto na força da vida. Hoje digo aos jovens, não tenham pressa… Mas esse é um tempo que recordo como um tempo de felicidade.

Era um menino privilegiado do Porto?

Não, nem por isso. Apesar de pertencer a uma família sem problemas financeiros. O que eu tinha era muito energia, mas tinha também alguma tristeza e nessa altura não deixei de pensar no suicídio. Não com a ideia do praticar, mas do seu acontecimento, em saber porque é que as pessoas se suicidavam.

Que idade tinha?

Era um garoto. Percorri a minha infância, depois a puberdade, a maturidade e agora começo a entrar na velhice. São períodos, não é um momento.

Lembra-se bem dos seus pais?

Lembro bem, claro. Eram pessoas excepcionais, carinhosos. Induziam aquilo que era bem, mas não eram austeros ou castigadores. Veja um exemplo: eu e o meu irmão Casimiro andávamos sempre juntos, na boémia, de maneira que entrávamos em casa às quatro da manhã. Mas o nosso pai nunca nos castigou. Um dia percebendo que isso se prolongava, ficou à nossa espera no topo de uma escadaria que havia lá em casa. Quando subimos as escadas demos com o meu pai lá sentado.

Era um jovem, presumo?

Teria 18, 19, 20. Era um jovem. Seduzido pelas noitadas, dançava com aquelas mulheres, etc.. Mas o meu pai não disse uma palavra. Ora isso foi mais forte do que se fôssemos castigados.

Percebo que o seu pai também foi uma referência marcante na sua formação.

Foi um educador exemplar. Uma educação de tolerância extrema e exemplar nas obrigações e nos deveres. Não há educador nenhum que substitua a educação dos pais. A minha primeira formação começou mesmo em casa, mas também com as assinaturas do Teatro Sá da Bandeira e do Teatro S. João. Aí eu via circo, teatro e ópera.

E o cinema?

Sim, cinema também. Com seis anos começaram a levar-me ao cinema, ao Gil Vicente, que era no Palácio de Cristal. Depois comecei a ir sozinho.

Lembra-se do primeiro filme que viu?

Acho que deveria ser um filme do Méliès. Depois vi muitos do Max Linder e do Charles Chaplin, que era exemplar nos filmes que fazia. O rigor das suas filmagens é extraordinário.

O que mais o atraía a fazer cinema?

A arte é uma revelação da vida. Se nós virmos um desastre de automóvel ou alguma coisa que impressiona, depois de assistirmos a essa tragédia, o que acontece? Ficamos com a necessidade de contar ao primeiro amigo que virmos. Aí está a formulação do espectáculo! Isso depois passa para o teatro e do teatro para o cinema, para a pintura, para a literatura, etc, etc. É uma característica do ser humano, de repor aquilo que aconteceu. Por isso, a minha cultura vem daí, dos teatros que vi…

Apesar de tudo, a sua curiosidade no cinema começou primeiro como actor e só depois como realizador.

Sim, no princípio era um actor. Eu via os filmes cómicos e gostava imenso daquilo. Depois ensaiava diante do espelho as facécias que via fazer. Mas essa propensão de actor desapareceu e foi substituída pela de realizador. Entretanto, comecei a escrever um argumento, apesar de me julgar incapaz de o fazer.

Já estava a pensar em ficção? No Aniki Bóbó?

Não, foi antes, porque aí eu ainda não tinha filmado. Só depois é que me virei para o documentário, porque começaram a aparecer revistas que falavam de cinema e também os primeiros filmes russos, como A Mãe, de Pudovkin, e A Linha Geral, do Eisenstein. Entretanto, lia coisas sobre montagem e isso começou a dar-me alguma formação cinematográfica que me atraía muito.

Ainda conserva a sua primeira câmara de filmar?

Infelizmente não. E bem com pena estou. Era uma Kinamo. Mas como não tinha disponibilidades acabei por vendê-la para comprar outra. E ao desbarato. Ainda tentei encontrar a Kinamo mas já não consegui.

Como está o processo da Casa do Cinema Manoel de Oliveira?

Nem me fale nisso, que é um desastre. Um desastre pegado.

As coisas não andam?

Eu ofereci à câmara, já há nove anos, o meu acervo, em determinadas condições. Quer dizer, não era para ficar fechado, mas vivo, a trabalhar. Entretanto, fizeram a Casa, antes de fazer a combinação do contrato. Eu não queria casa nenhuma, qualquer casa servia. Bastava ter a dimensão e a necessária adaptação.

O que falhou?

O que falhou é que eu não queria casa nenhuma, apenas queria fazer o contrato com as minhas condições. Assim chegamos a este impasse. A câmara procedeu sempre como se tivesse comprado o acervo, quando o acervo era oferecido em determinadas condições. Claras desde o primeiro dia. E que nunca foram conversadas.

Quais eram as suas condições?

Que fosse uma coisa viva, aberta, que fizesse conferências, onde pudessem ser apresentados filmes, meus ou de outros.

Sente que a actual câmara poderá alterar este estado de coisas?

É melhor perguntar isso à câmara…

Manoel é o seu nome original?

Quando nasci escrevia-se Manuel com 'o'. Eu fui registado com 'o'. E escrevia Manoel nos filmes, mas eles emendavam porque a ortografia moderna já era com 'u'. Umas vezes punham 'o', outras vezes punham 'u', até que eu impus: é 'o'! Tanto que nessa altura, quando já era mais conhecido, em França tratavam-me por Messieur de Oliveira, em Itália era Il Maestro e em Portugal era Ó Manel!

Ó Manel?

[risos] Mas isso está muito certo porque punham logo o 'o' em evidência. 'Ó' Manel! Tiravam o 'o' do nome e punham 'Ó Manel'! [risos] Está muito certo e é como eu gostava mais…

Diz isso, mas não haverá também aí alguma ironia por ter recebido, talvez, mais carinho por parte dos franceses e dos italianos do que dos portugueses? Sente alguma mágoa por isso?

Não sinto absolutamente mágoa nenhuma. Houve sempre portugueses que me estimaram. O que houve foi um grande contentamento, uma grande satisfação porque quando apresentei o meu primeiro filme [Aniki Bóbó, em 1942] foi pateado e assobiado. O que vale é que no congresso internacional de crítica, o Pirandello e um grande crítico do jornal Le Temps, que é hoje o Le Monde, aplaudiram muito o filme. O Pirandello até me perguntou se em Portugal era habitual aplaudir com os pés…

No geral, a crítica internacional tem-lhe sido favorável.

Sim, em Itália e em França, tenho recebido os melhores comentários. Desde Douro, Faina Fluvial. Passados alguns anos, o Aniki Bóbó foi considerado imoral e saiu de cartaz mais cedo.

Em Portugal?

Sim, cá. Passado um ano ou dois o António Lopes Ribeiro passou o filme, e depois em Paris, e em Cannes, na secção de filmes sobre a infância, ganhou um diploma de honra. Depois já foi reconhecido. Hoje é o filme mais popular que tenho. Cá e lá. Até na América. Quando o Amor de Perdição foi apresentado na televisão, caíram-me todos em cima. Depois, passou nas salas de Lisboa e de Paris e foi um sucesso. Em Itália, a mesma coisa com o Francisca, porque em Itália gostam mais deste, enquanto que em França é do Amor de Perdição.

Acha que o público português não o merece?

O público português estima-me muito. Aqui no Porto, em Lisboa ou noutros sítios, sou abordado constantemente por pessoas que me cumprimentam. Sou muito estimado. No entanto, é mais por aquilo que ouvem e vêem, mesmo que não percebam nada de cinema. Mas gostam de mim e eu gosto que gostem de mim. Até por isso é que eu queria que o meu acervo ficasse no Porto, porque estimo muito a cidade onde nasci e onde vivo. Não sei onde vou morrer nem quando. Também não tenho pressa… [risos] Nem curiosidade de saber o que vem depois.

Diz que as pessoas gostam de o cumprimentar e de o elogiar, mas já alguma vez lhe fizeram uma crítica directa a si ou a algum dos seus filmes?

Sim, há críticos que até primam por isso. Sobretudo em Lisboa. Há alguns em particular que gostam de dizer mal.

Recebe mal as críticas?

Quando me fazem uma crítica que fala mal do filme, por qualquer razão que eu sinto que é uma razão política, de simpatia, de antipatia ou qualquer coisa, isso só me estimula, agora se me toca em qualquer coisa em que tem realmente razão, sinto que me tocam na ferida e aí procuro corrigir.

Uma crítica recorrente à sua obra é dizer que o seu cinema é um pouco parado, teatral, com pouca acção. Como responde a este tipo de crítica? Se calhar é até mais um comentário…

Sim, é um comentário. A verdade é que está na moda o movimento. O movimento é distractivo. Alguém disse que o presente é eterno. O presente é um instante, não há movimento, portanto, a eternidade é parada . Não avança nem recua. Há um quadro do Leonardo Da Vinci que é a Anunciação, em que o anjo está de joelhos a avisar a Nossa Senhora que está defronte. Está tudo parado. Existem várias árvores atrás, mas os ramos estão imóveis. A imagem é tão parada que sugere a eternidade . O movimento é um espaço temporal. O parado é intemporal, compreende?

Compreendo.

Bom, o parado dá tempo à reflexão, o movimento distrai.

Mas no seu cinema, a palavra também tem um efeito muito importante e é também, em certa medida, movimento. Concorda?

Também é um movimento temporal. Dizer qualquer frase ocupa um certo tempo, mas ocupa-o num momento parado. Quer dizer, a imagem está parada e a palavra move-se. E a palavra é também imagem. De resto, tudo é imagem. Acho até que a forma mais rica de expressão humana é a literatura, porque não tem imagem. Todas as imagens pertencem ao leitor. O leitor faz as suas imagens, faz o seu filme de leitura livre. Mas tem lá as palavras.

Como é que o Manoel definiria o seu próprio cinema?

Quando vou a Veneza vou sempre a Pádua, para ver o Santo António e o cavalo do Donatelli. É um cavalo com um guerreiro que tem uma esfera e está com o casco pousado na esfera. Suponho que é o domínio do mundo. Aquela escultura sempre me seduziu muito. Sempre que posso vou lá vê-la.

E isso relaciona-se com o seu cinema de que forma?

Já vamos à resposta. Um certo dia vi essa fotografia numa revista a dizer que o escultor Donatelli procurava a simplicidade e o realismo da Renascença. Aquilo caiu-me muito bem. É isso que eu procuro. Tornar as coisas profundas um pouco mais claras.

Curiosamente, recordo-me de uma notícia que tive ocasião de lhe mostrar quando viajámos os dois de Veneza. Ela relatava que o casal Oliveira havia sido comparado a um outro casal americano que também estava lá, que era o Brad Pitt e a Angelina Jolie. Na altura, quando o confrontei com esta notícia disse-me que não sabia quem eram. Hoje já sabe quem são?

Já sei quem é. Gosto desse actor. Vejo-o algumas vezes na televisão. É muito bom actor.

E ela?

Ela não sei bem quem é. De qualquer maneira é um elogio muito forte.

De qualquer forma, tanto o Manoel como a D. Maria Isabel mostram-se no filme bastante à-vontade.

Aquilo nem era bem representação. Nós fizemos o melhor que pudemos. Não havia nenhum efeito de representar. Foi um descanso quando acabou.

O Manoel de Oliveira vê os filmes made in Hollywood? É um tipo de cinema que lhe agrada?

Vejo sobretudo na televisão. São muito repetitivos, é sempre a mesma coisa, sempre as mesmas misturas. São muito rápidos. Sabe que em Veneza, os filmes passam às oito da manhã, recorda-se disso?

Foi lá e a essa hora que vi o seu filme.

Antes do filme passar na sessão para o público, muita gente veio dizer-me que tinha gostado de me ter visto a mim e à minha mulher. E diziam: 'Que calma, que sossego!'. Isso tocou-me muito, porque não há nada que mais satisfaça um artista do que a compreensão do seu trabalho.

Qual é dos seus filmes aquele por que sente mais afecto?

Pelo próximo, pelo próximo!

E qual vai ser o próximo?

Não sei bem ainda. Provavelmente será uma versão nova de Angélica.

Angélica?…

Sim, é um filme que eu escrevi há algum tempo, mas que seria uma versão nova a que chamaria O Estranho Caso de Angélica e passa-se na actualidade. O outro foi feito no tempo do Hitler, da guerra, em que as pessoas tinham fugido de toda a parte da Europa.

E a Angélica quem era?

Era uma fugitiva que se instala na Régua, no Douro. Depois passa-se uma história estranha.

Acha que o poderemos ver no ano que vem?

É difícil, está tudo muito dificultado. Não sei se arranjarei o dinheiro suficiente para fazer o filme. Tenho um produtor [François d'Artemare] que procurará encontrar dinheiro para fazer o filme. É que os produtores já não metem dinheiro para fazer os filmes.

Será um produtor francês ou português?

Provavelmente será a continuidade deste, embora não tenha nenhuma razão de queixa do anterior [Miguel Cadilhe], que por acaso gosta muito deste tema.

Ficou com pena, na altura, da Catherine Deneuve ter recusado o papel?

Não, não tive pena nenhuma. Por cortesia, convidei-a porque ela tinha feito o filme do Buñuel. Da mesma forma, queria fazer a mesma homenagem ao Piccoli. Mas como não foi possível contar com a Catherine, fui buscar a Bulle [Ogier] que foi uma maravilhosa Séverine. Não sei se a Catherine estaria tão bem. É claro que há pessoas que confundem a personagem com o actor. O Rei Lear já foi representado por muitos actores. No meu filme, a personagem não é a Catherine é a Séverine e a Séverine pode ser representada por qualquer outra pessoa.

Chegou a falar com a Catherine depois desse filme?

Quando o filme passou em Veneza, ela estava no júri. O filme passou fora de concurso, como eu gosto. Encontrei-a no jantar final e perguntei-lhe se ela estava zangada comigo. Mas ela disse que não, pelo contrário, que tinha gostado muito do filme.

Um produtor importante na sua carreira foi o Paulo Branco.

Sabe, prefiro não falar disso.

Recebeu este ano o prémio da crítica independente no Festival de Veneza para Cristóvão Colombo – O Enigma. O que significou para si?

É um prémio muito bonito. É um prato preto com um peixe com escamas. É lindíssimo. Queria fazer uma fotografia bonita para oferecer à Gulbenkian, porque sem o apoio da Fundação não tinha feito o filme.

Recebeu também um prémio de carreira nos Estados Unidos.

O prémio ainda não o recebi. Era muito pesado e eles disseram que mo mandavam. Até juntei um livro que tinha comprado num museu que também era pesadíssimo e pedi-lhes para mo enviarem juntamente.

Há pouco falou no Ministério da Cultura que também o ajudou. Em retrospectiva qual foi para si o mais empenhado ministro da Cultura ou secretário de Estado a defender o cinema e o seu trabalho?

O mais empenhado foi a actual ministra da Cultura, que me disse que eu poderia fazer filmes até aos 100 anos.

Até aos 100 anos, apenas?

Só até aos 100 anos. Eu lamento que seja só porque se me permitisse fazer dois ou três filmes por ano, sempre seguidos, um atrás do outro, ainda vá que não vá.

Mas como é que o Manoel consegue fazer mais do que um filme por ano quando há realizadores que andam aí anos para fazer um único filme?

O que eu tenho é ideias já feitas e escritas. E gostava muito depois de cumprir estes que tenho agora à frente, são uns três ou quatro, de fazer também o filme do último livro da Agustina. Teria muito empenho em fazê-lo, mas não sei se será possível. É A Ronda da Noite, inspirado no quadro de Rembrandt.

O realizador Peter Greenaway também fez um filme sobre esse quadro, que passou em Veneza.

É preciso não confundir o retrato com o retratista. Esse contexto pode ser interpretado de mil formas. Para uns é visto de uma maneira, para outros é visto de outra. A verdadeira originalidade do artista está na sua personalidade. Isso disse o José Régio e é verdade. Não é fazer diferente, é a personalidade como é interpretado.

No seu caso, a sua personalidade parece combinar bastante com a personalidade da Agustina. Concorda?

Não concordo inteiramente. A minha personalidade não é certamente igual à da Agustina. Gosto muito do trabalho dela, porque é uma escritora vulcânica que vai ao fundo das coisas. As palavras saem-lhe como lava. É fantástico. Ela diz coisas como: 'A alma é um vício'. São coisas como esta que me tocam profundamente. Fico a pensar nisto e depois reconheço que a alma é mesmo um vício. É que o vício maior é aquele do qual a gente se não livra. Ora, a alma está colada, não sai. O vício também fica. Agora, não quer dizer que eu seja como ela. Por exemplo, o Cristóvão Colombo não tem nada a ver com ela. O Belle Toujours não tem nada a ver com ela.

Disse-me há pouco a D. Maria Isabel que estão casados há 67 anos. É isso?

Sim, casámos em 1940. É fácil fazer a conta.

E já se conheciam antes?

Sim, conhecemo-nos um ano ou dois antes.

Trata-se de um verdadeiro exemplo de…

… Resistência. Agora é um momento grave da minha vida e da vida dela porque não sabemos qual dos dois irá morrer primeiro. Esse é um problema.

O Manoel é uma pessoa difícil de aturar, ou nem por isso?

Quer dizer, a dificuldade em aturar cai sobre mim próprio. Aturar-me a mim próprio é que é muito difícil. O resto são ajudas. A Isabel só me ajuda.

E a morte é algo em que pensa?

Penso muito nisso.

Mas com uma atitude filosófica de encarar o seu limite?

Não, como uma atitude humana.

Tem ainda muitos projectos a marinar na sua cabeça?

Tenho, tenho. Falta-me apenas tempo e dinheiro. Ficaria consolado se me saísse a sorte grande e ficasse muito rico.

E o que faria com esse dinheiro?

Gostava de ser excepcionalmente rico para ajudar os necessitados e fazer os filmes. A maior parte dessa fortuna seria para os necessitados, porque também sofro com esse sofrimento, e o resto para fazer os filmes que eu gostava, que são bastantes.

Como é que gostava de celebrar o seu centenário?

Não sei o que é que vai acontecer no meu centenário.

Poderemos esperar um filme?

Centenário com um filme… Sim, não estava mal. Não estava mal, mas não impede ter a família e ter a Maria Isabel. Portanto, é uma coisa familiar, com um particular. É curioso não é? É pessoal, eu e ela, os filhos, a família, os netos, e os bisnetos. É um percurso que eu desejava para toda a gente. Que fosse longo e feliz.

No seu caso, só o Ricardo Trêpa parece seguir o caminho do cinema.

Como actor. Ele tem vocação natural.

Vê ali também um pouco de si? No sentido que um dia também se deixou tentar pela carreira de actor?

Para mim, foi uma coisa passageira. A mania passou-me depressa.

Foto: Humberto Almendra/SOL