‘A publicidade pode fazer mais do que vender produtos’

Cada arma tem uma história. É esta a premissa de Guns With History, uma campanha que, numa semana, atingiu os 12 milhões de visualizações e despertou a raiva dos defensores de armas nos EUA. Por detrás do conceito está o português João Coutinho, o mesmo que, há dois anos, pôs os brasileiros a doarem órgãos.

Como nasceu esta campanha?

A States United To Prevent Gun Violence (SUPGV) é um cliente pro-bono da Grey. A ideia é fazer trabalho que seja bom para os dois lados, que dê resultados para o cliente e visibilidade para a agência. Nesse sentido, qualquer criativo da Grey pode aparecer com uma ideia para a SUPGV. Foi isso que aconteceu. Certo dia, a altas horas da noite, eu e o meu dupla (o brasileiro Marco Pupo) estávamos a trabalhar e começámos a pensar em ideias para a SUPGV. A última campanha que o cliente tinha feito visava ‘desarmar’ o lobby das armas, através do site unloadyour401k.com – o 401k é o fundo de pensões da maioria dos americanos e, através deste site, uma pessoa pode ver se a sua reforma está investida em armas, e nesse caso, pode desactivar esse investimento. É uma ideia poderosa, ganhou vários Leões em Cannes, mas não teve impacto nas pessoas. O nosso raciocínio foi: como é que podemos alertar as pessoas que, ao comprarem uma arma, essa arma carrega riscos?

Para esta campanha foi montada uma loja em Nova Iorque onde cada arma à venda trazia uma etiqueta com o seu historial. Quanto tempo foi necessário para concretizar esta ideia?

A ideia surgiu em cinco minutos, mas demorou cinco meses a acontecer. Toda a gente nos disse que ia ser impossível abrir uma loja de armas em Nova Iorque. Felizmente temos uma equipa fantástica, que foi fundamental a pôr de pé a ideia. Aqui nos EUA tudo tem de obedecer a regras. Às vezes é chato, mas é por isso que as coisas funcionam tão bem. Acreditem ou não, a loja é 100% legal. Temos todas as licenças que fazem com que a National Rifle Association (NRA) não nos consiga processar. Foram precisas mais de 20 reuniões com os advogados para fazer tudo dentro da lei. Depois havia a parte do dinheiro. Esta é uma ideia cara de produzir. Toda a gente trabalhou praticamente de graça, só assim pôde acontecer. Um grande aplauso à Rival School Pictures, que acreditou na ideia e decidiu produzi-la.

É um olhar não-americano que está ali, uma vez que na Europa temos uma relação muito diferente com as armas?

Sabia que o tema era sensível, mas fiquei a saber muito mais sobre o assunto. Nova Iorque é dos poucos Estados com políticas de restrição à compra e porte de armas. Mas no resto dos EUA, as pessoas adoram armas. É cultural. Faz parte da educação o pai levar os filhos a atirar num shooting range ou disparar contra latas e garrafas no quintal. As arma passam de pai para filho. Segundo a Segunda Emenda da Constituição Americana, é um direito dos americanos terem armas para se defenderem. E é um direito do qual a maioria não abdica. A nossa visão é completamente diferente. Nós só vemos armas na cintura dos polícias ou militares, não nos passa pela cabeça que um civil ande armado.

Que tipo de reacções tem recebido?

A Fox News é assumidamente um canal republicano, por isso disseram mal da campanha, como era de esperar. Dizem que são todos actores, que é tudo ilegal e que a NRA tem de agir judicialmente. Estes dois pontos foram os argumentos mais utilizados pelos gun nuts para tentar descredibilizar a campanha. Mas o único actor é o Ned Luke, que faz de vendedor. Ele tem uma história engraçada: no dia da abertura da loja, contou-nos que era o Micheal De Santa, personagem do jogo GTA. Neste jogo ele faz o papel de um gangster, anda armado até aos dentes. Infelizmente foi ele quem mais sofreu ameaças nas redes socais. Nós não sabíamos quando o escolhemos. As personagens mais famosas que falaram sobre a campanha foram o Jim Carrey, a Mia Farrow e o Piers Morgan. As redes sociais pelo mundo fora manifestaram-se de forma muito positiva sobre a campanha. Em seis dias atingimos os três milhões e meio no YouTube e 8.5 milhões de views no Facebook, fazendo um total de 12 milhões em menos de uma semana, com zero dólares investidos em media.

Até a página do Presidente, The Obama Diaries, publicitou a campanha. Houve muito feedback do sector político?

Houve alguns políticos democratas e pessoas de outras organizações Gun Control que se manifestaram.

E tem recebido muitas ameaças?

O cliente recebeu vários processos da NRA. Já estão habituados. Mas recebeu também um aumento gigantesco do número de donativos e de pessoas que assinaram a petição. Nós, felizmente, não recebemos nenhuma ameaça, mas quando vejo os vídeos de resposta no YouTube, fico meio apavorado. Um misto de riso com medo. Há gente doida que adora armas e ficou furiosa com a campanha.

Num país onde parece missão impossível mudar as leis em relação às armas, mudar as consciências pode ser o caminho?

A Rachel Maddow, quando comentou a campanha no seu programa [The Rachel Maddow Show, na MSNBC], toca exactamente nesse ponto. É muito difícil mudar as leis das armas neste país, mas pela primeira vez, quem vê este vídeo, põe-se na pele de quem mata e não da vítima. Quem compra uma arma tem de saber que o seu filho de cinco anos a pode encontrar e matar o irmão bebé de nove meses. Os pro-gun falam muito em aulas de segurança, mas a verdade é que mesmo com segurança as tragédias acontecem, como prova a história.

Se olharmos para esta campanha e para Fãs Imortais [campanha do Sport Clube do Recife que visava estimular os adeptos do clube a doarem órgãos], são exemplos de que, para si, a publicidade tem de ter um carácter social. Porquê?

Acredito que a publicidade pode fazer muito mais do que vender produtos. Não sou só eu, são muitos criativos e alguns clientes. Felizmente tenho tido a sorte de trabalhar em estruturas que suportam este tipo de iniciativas.

Alguns amigos seus têm brincado para reservar já um quarto em Cannes. Está confiante que vêm aí mais prémios?

Os números são bons e adivinham alegrias, mas nesta indústria nunca se sabe. Pode não ganhar nada. Pelo menos fiz uma campanha da qual tenho um tremendo orgulho. Guns With History fez as pessoas pensarem e iniciou uma discussão sobre um tema muito sensível. Passou em 96 canais de televisão aqui nos EUA, locais e nacionais, para além de ter corrido o mundo. Vi comentários no Twitter de pessoas que estavam indecisas em comprar uma arma e esta campanha mexeu com elas. O mesmo aconteceu com as pessoas que foram à loja. Recebemos um email de um sobrevivente de um massacre numa escola a dizer que tinha ficado muito sensibilizado com a campanha e que isto podia mudar mentalidades.

raquel.carrilho@sol.pt