Estreada em 2013, vai agora na terceira temporada, tendo sido criada por Beau Willimon, para difusão no site Netflix (em Portugal pode ser vista no cabo). O que, por outro lado, tem feito de House of Cards uma espécie de fenómeno de elite, coisa aparentemente pouco consentânea com o estatuto sociocultural dos relatos mediáticos.
Há vários componentes que distinguem esta admirável série de muitas outras com que as grandes produtoras de TV, em especial as norte-americanas, nos têm brindado.
Não aprofundarei agora esses componentes, mas ressalvo, desde já, dois.
Primeiro aspecto: o facto de este ser primordialmente um produto para a internet leva a que sejam reinventadas as lógicas dominantes na exibição de televisão, seja por cabo, seja em antena aberta; isso implica protocolos de visionamento diferentes dos usuais, com inevitáveis reflexos, a montante, nos procedimentos de escrita e de realização.
Os vários episódios da série podem ser 'lidos' pelo espectador numa ordem e num ritmo que não dependem das grelhas de programação; quem vê House of Cards tem a responsabilidade de livremente lidar com as dinâmicas da acção, com a relativa complexidade sintáctica dos episódios e com os movimentos evolutivos das personagens.
Segundo aspecto: a emissão desta série televisiva via internet acentua e estimula a recepção em dispositivos móveis, tirando partindo da portabilidade que hoje os caracteriza.
O que interessa isto para um professor de literatura?
Respondo brevemente: vários dos meus alunos de Estudos Narrativos, no mestrado em Comunicação e Jornalismo da Faculdade de Letras de Coimbra, escreveram trabalhos (alguns muito argutos, para que conste) sobre House of Cards.
Mas não o fizeram sem a consciência de que não estudamos as narrativas encerrando-as em compartimentos isolados. House of Cards tem que ver com o romance de costumes (e político) do século XIX; o princípio da serialidade, mesmo reelaborada, regista uma larga tradição acumulada na literatura, na rádio, na banda desenhada e na televisão; os modos de figuração das personagens (Frank Underwood e os que o rodeiam) têm ares de família com os das personagens da ficção oitocentista, mesmo que agora circulem por Washington, voem no Air Force One e conspirem em Camp David.
Como quem diz: as Humanidades e os seus grandes temas – a ambição e a perfídia, o amor e o ódio, a paz e a guerra, a liberdade e a vingança – reinventam-se, ganham novas formas e continuam a fazer o sentido que os nossos medos e os nossos desejos nelas procuram.