A concurso está o polícia municipal Rui Bento, que vai apresentar pela primeira vez a sua Amnésia. “Até Abril do ano passado, não bebia álcool. Fui 'baptizado' com uma cerveja artesanal portuguesa e foi paixão ao primeiro gole. Do ano passado até agora tentei experimentar o máximo de cervejas possível. Fiz a minha primeira cerveja em casa no dia 1 de Novembro de 2014 e a partir daí nunca mais parei”, conta enquanto apresenta as suas mais recentes criações: a Smokin' e a Weissbier, que se vão apresentar ao painel de jurados este sábado.
A tarefa de decidir quais são as melhores cervejas artesanais portuguesas não se adivinha fácil. O ano passado concorreram 15 mestres cervejeiros com 29 referências. E este ano, Bruno Aquino, organizador do evento e autor do blogue Cervejas do Mundo, acha que os números podem ser superiores, já que se há um ano havia meia dúzia de cervejeiros, hoje há mais de 60, sem contar com os que apenas produzem para 'consumo interno', entenda-se para amigos e família.
Foi assim que Rolim Carmo e Jorge Borges, da Mean Sardine, deram início às hostes: “Começámos por fazer cerveja em casa. Depois de alguns lotes para a família e amigos, as coisas começaram a crescer e decidimos avançar com uma marca”. Hoje produzem cerca de oito mil litros por mês. “Começámos timidamente mas agora está na altura de retribuir tudo o que alcançámos. Ao vencedor do concurso, vamos dar a possibilidade de fazer a cerveja nas nossas instalações e depois vamos apoiar na sua distribuição. Estamos cá para isso”, lembram os sócios que hoje têm no mercado a Zagaia, a Amura e a Voragem, nomes em homenagem à vila piscatória da Ericeira onde produzem as suas cervejas. A primeira, “uma Belgian Dubbel, ruiva, mais doce, mais caramelizada; a segunda uma American Pale Ale, mais clara, com lúpulo americano, muito aromática; e finalmente uma Black IPA, uma cerveja preta mas muito aromática”. Para quem está a dar os primeiros passos neste mundo, os nomes podem não ser fáceis de decorar. Mas Rui Matias tem um conselho: “Deve-se começar sempre por dois dedos de conversa. Há quatro sabores – doce, amargo, salgado e ácido – e deve-se perguntar à pessoa o que ela prefere. Depois é experimentar”.
É assim na Cerveteca. Com centenas de cervejas, de vários estilos, quem chega ao balcão encontra Rui e Carolina Cardoso, para uma viagem ao mundo das cervejas artesanais. Um mundo que também os leva por outras paragens. Uma delas levou-os à Dinamarca onde conheceram Tobias Emil Jensen, o mestre cervejeiro da dinamarquesa To-Ol. Aos 23 anos já produzia para amigos e hoje, aos 28 anos, tem 19 referências diferentes e ainda alguns lotes especiais que produziu para o Noma, o conceituado restaurante dinamarquês, considerado o melhor do mundo. Conversa vai, conversa vem, Carolina e Rui convidaram-no a vir a Portugal para dar a conhecer a sua To-Ol. “O nome significa duas cervejas e a piada é que é o único caso em que uma pessoa vai pedir duas cervejas e só lhe vão servir uma!”, explica Tobias. Mas quem pensa que a To-Ol não passa de uma brincadeira, desengane-se. Vende-se já pelos quatro cantos do mundo e, na sua passagem por Portugal, Tobias fez uma parceria com a Mean Sardine para uma edição especial To-Ol fermentada em barricas de vinho da Madeira. Além disso, ainda foi a estrela num jantar harmonizado com cerveja. O evento, à porta fechada naquele que vai ser o restaurante Le Moustache Smokery, em Lisboa, do ex-concorrente do Masterchef Daniel Cardoso, estava limitado a 30 pessoas e esgotou rapidamente.
Para a educação dos novos clientes, Bruno e Rui consideram que eventos como este são fundamentais. “É preciso apostar no food pairing. Estamos em contacto com alguns chefes que se começam a interessar por cervejas. O Tobias já fez uma cerveja para o Noma. Se as pessoas pensam que cerveja e comida não ligam é por que nunca beberam uma Duchesse de Bourgogne ao mesmo tempo que estavam a comer um perna de borrego assada no forno”, assegura Rui. E acrescenta: ““A cerveja artesanal é um mundo exactamente igual ao do vinho – com outro tipo de nuances, outro tipo de variedades é certo – mas é um mundo igualmente complexo e vasto, por isso quem sabe apreciar um bom vinho, sabe apreciar uma boa cerveja”“. Bruno recorda inclusivamente que há uns anos participou no evento Fermentarium no Casino da Figueira, onde havia a hipótese de fazer o casamento de queijos portugueses com vinho e com cerveja. “Levámos cervejas artesanais belgas, inglesas e norte-americanas e fizemos a sua harmonização com queijo Rabaçal, de Niza e da Estrela. E esses queijos tinham uma ligação melhor com cerveja do que com vinho! É preciso é que os chefes portugueses se apercebam que as cervejas têm uma amplitude de sabores e de aromas que é muito incomum na maioria das bebidas alcoólicas”.
Um dos objectivos quer da Cervejas do Mundo, quer da Cerveteca, quer dos produtores é promover esta ligação entre as cervejas artesanais e a gastronomia. Mas não são os únicos. Tanka Sapkota, do restaurante Forno D'Oro, em Lisboa, fez a mesma aposta: resolveu casar as suas pizzas napolitanas, cozidas a forno de lenha, com cervejas artesanais, muitas delas exclusivas em Portugal. “Quisemos ligar a pizza com a cerveja porque em Itália esse casamento é algo comum. A questão é que aqui elevámos a fasquia não só com pizzas feitas com ingredientes de grande qualidade e com produtos DOP, mas também com cervejas artesanais de um segmento premium. Até temos cá uma belga, fermentada em barricas de champanhe”. Tanka, refere-se à belga Deus – Brut des Flandres, cuja garrafa chega aos 49 euros. Rui lembra outras harmonizações com sucesso garantido: “Cerveja com queijos, carnes e chocolates. Ah! E uma stout com ostras é uma das harmonizações mais famosas no mundo cervejeiro. Mas se em 2008, antes de começar a beber cerveja artesanal, me dissessem que iam servir-me uma cerveja num jantar eu confesso que ficava surpreendido”.
Quem não está nada surpreendida com as potencialidades da cerveja artesanal é a neurocientista Susana Novais Santos. Depois do Mestrado em Engenharia Biomédica no Imperial College of Science, Technology and Medicine em Londres, do Doutoramento em Neuroengenharia na University of Pennsylvania (pertencente ao prestigiado conjunto de elite Ivy League, tal como Harvard e Yale) – foi aliás a primeira portuguesa a terminá-lo -, dedica-se agora ao Mestrado em Neurogastronomia, numa parceria entre a Faculdade de Ciências e Tecnologia e o Instituto Superior de Agronomia da Universidade de Lisboa.
“Trata-se de uma abordagem neurocientífica da gastronomia, que investiga como o cérebro interpreta os aromas, sabores, texturas, cores e todos os outros atributos que caracterizam os alimentos e os estímulos que recebemos quando degustamos um prato”. Mas a especialização que agora se prepara para tirar não se aplica apenas ao que comemos. “O meu gosto pela cerveja surgiu nos EUA. Costumo dizer, a brincar, que consegui fazer todo o curso de Engenharia no Instituto Superior Técnico sem beber uma única imperial”. Mas, entretanto, já recuperou o tempo perdido. No âmbito do Mestrado em Neurogastronomia, aprendeu os processos de fabrico da cerveja e começou a produzir cerveja artesanal. “É uma experiência interessante e bastante recompensadora”. Mas não se ficou por aí. Resolveu fazer a tese de mestrado tendo por base uma abordagem neurocientífica da cerveja: “Isto é, o modo como o nosso cérebro interpreta os estímulos sensoriais resultantes do consumo de diversos tipos de cerveja. As mais consumidas em Portugal – Sagres e Super Bock – são do tipo pilsner, leve e 'fácil' de beber. Quem apenas bebe pilsner, e não percebe muito de cerveja, geralmente acha as artesanais muito amargas (é a 'crítica' mais comum). Ora o amargo é uma qualidade (muito apreciada pelos conhecedores!) mas um consumidor não habituado a esse sabor amargo, vai reagir, do ponto de vista neurofisiológico, de forma diferente de um beer geek que adora lúpulo, como eu”, brinca.
E se há coisa que os beer geeks adoram é experimentar coisas novas. Bruno Aquino, já provou mais de 8 mil cervejas desde 2001. E Tiago Figueiredo, um “simples apreciador”, já vais nas 787 cervejas desde 2012. Rui, da Cerveteca, não pretende que todos os consumidores cheguem a estes números astronómicos. “Se é verdade que somos um país vinícola, é igualmente verdade que temos um palato muito treinado. Tão treinado que as pessoas vão a um bar e pedem uma Coca-cola e se não houver, não querem uma Pepsi. E o mesmo com a Água das Pedras. Por que é que somos tão exigentes com isso tudo e não somos com a cerveja?” .
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