O patrono deste Orpheu, era o filho de Calíope, o tocador de lira que fora salvar dos Infernos a sua Eurídice. Mas que, como a mulher de Lot (quantos infelizes há nos livros sagrados e contos dos deuses, castigados por 'distracção'), olhou para trás e ficou sem ela para sempre.
O grupo que se juntou em Orpheu, nesse ano de 1915, em que a guerra rasgava a Europa e em Portugal vigorava a 'ditadura' de Pimenta de Castro, tinha raras convergências de talentos.
Os directores eram, para Portugal, Montalvor, para o Brasil, o poeta Ronald de Carvalho; o editor era António Ferro, depois 'ministro da Propaganda' de Salazar; e os colaboradores são três génios do nosso século XX – Mário de Sá-Carneiro, Fernando Pessoa (Álvaro de Campos publicava aí O Operário e a Ode Triunfal) e José de Almada Negreiros.
A reunião efémera destes génios, faz a fama de Orpheu; que também era modernista e revolucionariamente iconoclasta. No desinteressante país dos republicanos de bengala e chapéu de coco, encarniçados contra jesuítas e religiosos em geral, a ética e estética de Orpheu eram 'novas' e levantavam fúrias.
A fúria tinha também a ver com os conteúdos e com a dissidência política, que o pensamento de colaboradores como Pessoa/Álvaro de Campos e Almada, em choque com a vulgata político-ideológica dos democráticos, despertava.
Porque o modernismo europeu – e americano – se levou a novos limites a procura iluminista do novo e do individual, desafiando tudo o que soava ao conformismo correcto e 'burguês' do liberalismo pomposo e endinheirado do século XIX, se fascinou com as máquinas, com as cidades, com as fábricas, também voltou à História, aos Heróis, à memória dos mitos fundacionais.
Desta síntese da radicalidade do ego iconoclasta – bebida em Nietzsche e na sua dialéctica de extremos – com a restauração dos sinais e valores da Memória e da Tradição e a recusa do optimismo e do progressismo – nasceu um modernismo reaccionário, um nacionalismo activista e simbolista, expresso ou subentendido na forma e na inspiração da poesia e da crítica de Pessoa e de Almada, mas também no espírito e na forma geral dos seus companheiros.
Alguns escribas actuais que não percebem o mundo fora das lentes deformadoras do ressentimento ideológico, andam por aí a ver se tapam o sol com a peneira, tentando uma desvinculação política do primeiro modernismo português ou caluniando os seus protagonistas mais definidos. Não parece que vão ter muita sorte.