Por onde andava ontem?
Estava no mar, perto da Graciosa.
Correu bem a pescaria?
Apanhámos 115 quilos de peixe. Não foi muito, mas foi bom. Chernes, gorazes e pargos.
Como é que um surfista de Lisboa se torna pescador nos Açores?
Comecei a vir aos 20 anos para fazer surf em São Jorge e depois vim 11 anos seguidos e fui ficando cada vez mais tempo. Apaixonei-me pela natureza e tranquilidade. Há seis anos andava pela Terceira, experimentei fazer pesca profissional e gostei. Havia um barco parado no porto, chamado Gigante, que tem 58 anos e estava ali abandonado há três ou quatro, sem qualquer tipo de arranjo. Pensei que ia para a lixeira e acabei por comprá-lo. Recuperei-o e em 2012 mudei-me de armas e bagagens para a Terceira com a minha mulher, a Inês.
O que fazia em Lisboa?
Trabalhava num colégio em Almada. Era responsável pelas actividades lúdicas. Natação, passeios, idas à praia. E depois ainda vivi dois anos no Baleal.
E partiu para os Açores logo com a ideia de viver do mar?
Vim com a ideia ganhar a vida com o barco, com a pesca profissional, já que gosto tanto do mar. Depois a secretaria das pescas dos Açores promoveu uma nova actividade que passa por levar os turistas a experimentar a pesca profissional. Comecei também a fazer isso e surgiu a Gigante Expeditions, a empresa que tenho com a Inês e na qual fazemos tudo o que é possível imaginar: pesca, passeios de barco, observação de golfinhos e baleias…
Vende o peixe que apanha?
Sim, sim. A minha mulher não gosta de fazer mal aos animaizinhos, cada peixe parece sei lá o quê, está ali um tesouro. Então quisemos levar a empresa mais para o lado turístico. A pessoa apanha o peixe, tira umas fotografias e depois devolve-o ao mar. Mas não posso limitar-me a isso. O barco é de pesca profissional e tenho de fazer descargas na lota. Tenho de apanhar peixe a sério.
O surf fica para as horas vagas?
É engraçado que é esta actividade toda ligada ao mar que acaba por me dar a preparação física e mental para depois estar na Nazaré. Caminhamos muito, estamos sempre no meio da natureza, é tudo muito relaxante e tudo envolve actividade física. O barco não pára, é quase como estar o dia inteiro a fazer pilates. Trabalha-se o equilíbrio e a parte psicológica. Às vezes estou só com a Inês, atracamos numa baía e vou apanhar ondas. E estar no meio do Atlântico durante a noite fortalece-nos. São coisas que depois transponho para o surf de ondas grandes na Nazaré.
Quando e como descobriu a Praia do Norte?
A primeira vez que lá fui foi em 2005, com o meu amigo Joãozinho, da Consolação. Mas nunca mais lá tinha ido até me ligarem em 2007 para fazer a segurança de um campeonato de bodyboard. Contactaram-me porque fazia tow-in [surf rebocado] e fui ganhando experiência na condução das motos de água e nos resgates. A prova realiza-se a cada dois anos e voltei a fazer a segurança em 2009 e 2011. Nesse ano, fui convidado pelo Garrett para integrar a equipa dele. Ele precisava de alguém com experiência na Praia do Norte e a Nazaré passou a ser a minha casa na altura das ondas grandes.
Como encarou o convite?
Estava há quatro ou cinco meses no Algarve com a minha mulher e andava meio desmotivado com isto do surf. Lá as ondas não passam dos cinco metros e num sábado de manhã virei-me para a Inês e disse: 'Acho que vou parar uns meses, fazer outro desporto para limpar um bocado a cabeça'. Passados cinco minutos estava o Garrett a ligar-me. Perguntou-me se me importava de ir ter com ele para me ver a conduzir e puxá-lo para umas ondas. Pensei: 'Estou no pior momento de preparação da minha vida, mas ou morro a tentar ou fico a vida toda a pensar que devia ter ido e não fui'. No dia a seguir já lá estava e passei a fazer parte da equipa, com o Andrew Cotton e agora também com o Kealii Mamala. É a nossa mais-valia, a equipa. Na Nazaré, uma pessoa sozinha não faz nada e o Garrett escolhe muito bem quem o rodeia. São pessoas a quem se pode confiar a vida.
Assim que chegou também começou logo a surfar?
Depois daquele domingo à experiência, logo na minha primeira sessão a sério fomos os três para a água, eu, o Garrett e o Andrew Cotton. E foi o dia com as maiores ondas do ano. Foi tipo um teste.
O que aconteceu?
Quando as ondas estão muito grandes, as pranchas ficam fora de controlo com os ressaltos na água e colocamos pesos, uns seis ou sete quilos, para as estabilizar. Nessa minha primeira sessão, o mar só foi subindo ao longo do dia e estávamos sem pesos. O Andrew Cotton tinha dado uma queda brutal quando o Garrett se vira e diz-me: 'Hugo, queres apanhar a onda da tua vida?'. 'Garrett, claro que sim, mas a prancha não tem chumbos'. E ele: 'Mas tu queres apanhar a onda da tua vida ou não?'. Então pensei cá para mim: 'Vai mas é sem chumbos, vai já assim'. Correu bem e essa onda acabou por me dar logo a primeira entrada para os prémios XXL.
Foi chegar e convencer…
A partir desse dia passei a fazer tudo, como os outros: todos nós rebocamos, surfamos e fazemos os resgates, que é o mais importante. Aí não convém mesmo falhar.
Como se distribuem no mar?
Está um na prancha e dois nas motos de água. Um reboca e outro faz o resgate. Isto está num ponto em que as ondas são tão grandes que, quando o condutor da moto deixa o surfista na onda e vem para a parte de trás da rebentação, depois não consegue chegar a tempo à parte da frente para o resgate. Tem de ser outro. Na Nazaré, é suicida não ter motas de água.
Qual o episódio mais assustador que viveu?
Lembro-me de um resgate in extremis ao Andrew Cotton, em que tinha o caminho completamente cortado para o lado da Praia do Norte e para o lado Sul tínhamos de sair dali depressa antes que entrássemos na zona das pedras. Foi a maior onda que vi rebentar na Nazaré com pessoas na água. Quem levasse com aquilo em cima ou ficava muito mal tratado ou morria mesmo. Até há uma foto engraçada, em que se vê o Garreth numa moto e eu ao lado com o Cotton. Mas o mais assustador de todos foi uma queda do Garrett. Acho que foi a primeira vez que um ser humano se viu naquela situação. Aconteceu no dia em que apanhei a minha primeira onda gigante. Para se ver a diferença, eu tinha apanhado a maior onda da minha vida rebocado pela moto de água e o Garrett foi tentar apanhar uma onda a remar. Não conseguiu à primeira e, quando se virou para a seguinte, veio uma onda gigante. Viu que não dava tempo, largou a prancha e tentou mergulhar através da onda. Só que o fato dele tem flutuadores. E, em vez de mergulhar, o corpo dele acompanhou a rebentação até ao topo da onda e depois desapareceu. Enquanto não percebemos que ele estava inteiro foi um susto. Não sabíamos se era possível sobreviver à pancada que ele estava a levar
Já se viu nesses apuros?
Levar com ondas de 20 ou 30 metros na cabeça nunca levei nem quero [risos]. Mas já levei com algumas grandes, de 15 ou 17. Agradeço ao Garrett ter-me chamado a atenção para encarar tudo como parte do surf. OK, levámos com uma onda gigante na cabeça, estamos a ir para o fundo, vamos andar 20 ou mais segundos debaixo de água, então temos de apreciar. E é ter calma. O surfista não se pode fiar que vai ter a moto para o salvar. Temos de contar com a nossa preparação e a nossa confiança.
Como se prepara para ficar debaixo de água sem respirar?
Temos treino de apneia e aprendemos a conhecer como funciona o corpo humano. Só no sangue temos uns quatro minutos e meio de reserva. E temos mais nos pulmões. Sabemos também que aquelas primeiras convulsões fazem parte do processo e não são o nosso limite. A melhor solução nunca é respirar, porque debaixo de água não vamos respirar coisa nenhuma. Nós vamos é morrer se respirarmos. É o pior que podemos fazer porque vai água para os pulmões. Tendo isto bem interiorizado, é preferível deixarmo-nos desmaiar, que é o que acontece se nunca respirarmos, e confiar que alguém nos vai buscar.
Já passou por isso?
Nunca cheguei a esse ponto, mas já vivi situações extremas. Uma vez fui apanhado por uma onda e o Garrett foi-me buscar. Quando vi que a onda a seguir me ia cair em cima, agarrei-me à moto com uma mão e gritei para o Garrett arrancar. Só que não consegui segurar-me e o pior é que sabia que tão cedo não havia possibilidade de me virem buscar. Tive de levar com toda a sequência de ondas de 10 a 15 metros em cima. Só me apanharam ao pé da areia.
Conseguiu vir à superfície respirar entre cada onda?
Tive sorte. Estava com um colete insuflável que a marca Patagónia idealizou e forneceu aos 100 maiores nomes do surf no mundo. Não estão à venda, só o dão a pessoas que sabem que estão preparadas e que não se vão fiar só no colete. Tem quatro botijas de CO2, um dispositivo para as accionar e outro para vazar o colete. Funciona assim: levamos com uma onda em cima, activamos uma botija e ela impulsiona-nos até à superfície; se virmos que vamos levar com uma onda, puxamos outro fio para vazar o colete e mergulharmos mais facilmente. Hoje em dia, é a peça que levo sempre comigo. Mesmo no avião vai ao meu lado, nunca a meto no porão.
Também usa fatos com flutuadores?
Nos dias maiores, levo um fato desses do Garrett. É como um pneu, ficamos tipo boneco da Michelin, mas uma pessoa sente-se com uma armadura. Como é tudo acolchoado, ajuda até nos impactos na água. Mas é uma faca de dois gumes porque torna-se mais difícil mergulhar quando é preciso.
É um dos cinco finalistas na categoria de maior onda de 2014, nos prémios anuais do surf, a 1 de Maio. É a sua a maior? [vídeo aqui].
As maiores que lá estão são as três da Nazaré. Qualquer pessoa que olhe, vê. A minha foi uma onda diferente das outras duas. Rebentou de cima abaixo e fui sempre numa parte muito crítica da onda. Foi a maior que já surfei. Tinha certamente mais de 20 metros e surfei-a até ficar com dois ou três metros. Poderá ser uma mais-valia, mas qualquer um dos que lá está com ondas da Nazaré merece ganhar. Aliás, a Nazaré podia ter as cinco ondas finalistas, só que também é preciso diversificar e há duas da Austrália.
Dá-lhe mais gozo as actividades no barco ou surfar na Nazaré?
São prazeres diferentes. Mas no barco também me sinto a surfar. Já dei por mim na proa a sentir aquela imensidão do mar, a mesma paz e liberdade que sinto no surf. Ter este outro lado é uma vantagem. As pessoas às vezes só surfam. Eu tenho a Gigante Expeditions. Não sou só um surfista de ondas grandes. Sou um homem do mar. Também faço caça submarina e até escolhi uma ilha para viver. Na prancha, na moto de água ou no barco, eu quero é andar no meio do oceano.
Quando e onde se iniciou no surf?
A primeira vez que me lembro de ter pegado numa prancha era daquelas de esferovite. Foi na Praia Verde, no Algarve, e devia ter uns cinco anos. Aos 13 pedi uma prancha de surf aos meus pais pelo Natal e eles deram-me uma coisa quadrada. 'Então, o que é isto?'. E eles: 'É tudo a mesma coisa, é para andares nas ondas'. E eu pensei que tinha era de aproveitar. Comecei a fazer bodyboard e só aos 17 anos é que me virei para o surf. Hoje começa-se aos cinco ou aos seis.
Ia para onde?
Vivia em Lisboa e ia para a Costa. Entretanto os meus pais compraram lá casa e com 17 ou 18 anos mudei-me para lá. Na altura o surf não era muito bem visto, olhavam para nós como marginais que andávamos a ocupar os lugares do autocarro com pranchas. Mas depois apareceram os Morangos com Açúcar e, de há uns 10 anos para cá, o surf deixou de ter uma conotação negativa.
Quando se aventurou nas ondas gigantes?
Foi no México, em 2004, que vi fazerem tow-in pela primeira vez. Quando voltei comprei uma moto de água e comecei na zona do Bugio. Fui para as ondas grandes também para me afastar dos sítios com mais gente.
Um surfista experiente de ondas menores está habilitado a ir para o canhão da Nazaré?
Atenção, a Nazaré é completamente diferente. Nenhum ser humano está totalmente preparado para aquilo. O mar tem uma força fora do normal. Aconselho a fazer as coisas de uma forma gradual. Se uma pessoa começa a surfar ondas de seis ou sete metros e vê que sobrevive e desfruta, depois é ir passo a passo. Para ganhar confiança é importante o treino sem a prancha, que passa por fazer natação no mar, mergulho e apeia.
Quanto tempo aguenta debaixo de água?
Da última vez que fiz aguentei 4 minutos e 36 [risos].
rui.antunes@sol.pt