Humanidade premium

Há coisas, tipo espinhas, que ficam atravessadas na garganta e que um tipo, por mais que queira, não consegue engolir. Mas quando não consegue cuspir, às vezes não tem outro remédio senão engolir, e depois fica ali tudo arranhado e isso causa uma sensação desagradável que nem com litros de chá de gengibre lá vai.

A lista VIP dos contribuintes é uma dessas coisas que tem custado muito a engolir aos portugueses. É uma dessas espinhas que até pode ser que, empurrada por um bocadinho de pão, desça arranhando a traqueia dos portugueses e que eles se esqueçam da dor. Mas só até ao próximo entupimento do gasganete. Dizem que o melhor é comer devagar, que a sofreguidão é que tem destas coisas. Mas se o português é sôfrego, o que se lhe há-de fazer?

Trabalhei durante três anos naquele que é um dos dez clubes mais desejados da Europa, onde fui porteira. Uma das coisas importantes que retiro dessa experiência é que todas as pessoas que trabalham em qualquer tipo de atendimento ao público que, a não ser que tenham alguma coisa que interessa a alguém, são seres humanos de segunda categoria.

Ora, como eu até tinha um certo poder, não era de segunda categoria, só que tenho esta mania da igualdade, e isso é irritante quando se trata de seleccionar. Rapidamente entendi também que na hierarquia social dos que frequentam sítios, há toda uma organização VIP que é tão completa como a roda dos alimentos, porém de (di)gestão muitíssimo mais complexa. Para os VIP há duas formas de estar no social: ou na lista, ou com alguém que esteja na lista.

Porém, há também os que não precisam de estar na lista e esses são, de facto, os mais interessantes, porque são aqueles que conhecemos pessoalmente, com quem até temos alguma confiança, de quem sabemos alguma coisa e que temos todo o gosto em receber, já que, além de afáveis, são pessoas com quem estabelecemos laços afectivos que se estendem para lá do contexto profissional.

Vai para a lista quem não faz parte da família. E os que estão na lista são: a) os envergonhados; b) os convidados de alguém convidado; c) os que fazem parte, mas que por algum motivo não estão sempre no social; e, por último, na alínea d) os pretensiosos. Os piores da lista são mesmo os pretensiosos. São aqueles que têm a mania (como diria a Gisela do Masterplan) que são finos e importantes. São os que têm a mania que o mundo deveria curvar-se aos seus pés (sendo eles perfeitos estranhos), porque ostentam três nomes no Facebook. São os que acham que lhes deveríamos prestar vassalagem. São os que são capazes de dizer coisas como 'Mas você por acaso sabe… faz a mais pequena ideia de quem é que EU sou?!?' – (género, embaixadora portuguesa na Finlândia…) -, aos quais sempre respondi honestamente: 'Não, de todo. Mas já agora… Sabe quem é que eu sou?'.

Quando veio à tona mais esta história da lista VIP dos contribuintes, lembrei-me tanto das minhas noites de porteira!… Lembrei-me tanto de quando fazia parte, em mais uma extensão da minha vida, de uma humanidade que se achava premium, reservada, portanto dada a voos mais altos e a outras mordomias. Uma humanidade que, apenas por existir, poderia ditar o meu futuro naquele cargo, por exemplo.

Menos mal que nunca levei a humanidade premium muito a sério e que sempre achei que o melhor seria desvalorizar este tipo de comportamentos, porque, a bem dizer, não faziam parte da realidade, porque a noite é uma meta-realidade em que se pratica a catarse e se libertam os demónios acumulados ao longo de uma semana plena de frustração, na escuridão da caverna que ribomba os decibéis de uma música expurgadora. Muito Grécia.

Partindo do princípio de que sempre concluí que quem estava na lista não era assim tão VIP quanto isso, desvalorizo também a lista VIP dos contribuintes, criada pelo convidado Brigas Afonso. Desvalorizo porque acho que o verdadeiro parolo é o convidado que sinaliza o tratamento nas palminhas de 300 convidados, numa festa que costuma ter dez milhões. Ninguém quer saber dos 300 VIP, porque com o barulho das luzes é tudo igual! Ou será que não?

Portugal é um país pequeno crivado de mentes pequenas, também elas crivadas de delírios de grandeza. Vale mais um aperto de ossos do Alfredo do que qualquer lista do mundo! Até porque não se diz 'lista VIP', diz-se guest list, e porque nem sempre os que lá foram parar lá estão porque pediram.

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