Já há mais de 80 queixas-crime na legionella

Sempre que quer pagar um café, Rosa, de 57 anos, tem de pedir que lhe tirem o dinheiro da carteira, pois os seus dedos já não sentem as moedas. Também não sentem cortes ou queimaduras quando tenta cozinhar. As suas pernas, do joelho para baixo, perderam a sensibilidade e as dores nos músculos do corpo…

Rosa Ribeiro, que vive em Forte da Casa, é uma das 83 pessoas que já apresentaram queixa-crime por infecção com legionella no Ministério Público (MP) de Vila Franca de Xira, na Comarca de Lisboa Norte. O número deverá crescer até ao final do mês, quando termina o prazo de seis meses para a apresentação de queixa. Foi precisamente por causa deste prazo mais apertado que a delegação da Ordem dos Advogados em Vila Franca de Xira aconselhou os atingidos a avançarem já com as participações, deixando para mais tarde o pedido de indemnização cível, que pode ser feito até três anos, explica o presidente da delegação, Paulo Rocha.

Queixas contra desconhecidos

A investigação criminal ao surto está a ser conduzida pelo Departamento de Investigação e Acção Penal (DIAP) da comarca e dura   há quase meio ano. O MP já tem nas mãos, desde Fevereiro, as análises laboratoriais feitas pelo Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge, que confirmaram que a bactéria encontrada nos doentes é a mesma detectada nas torres de refrigeração da fábrica Adubos de Portugal, sabe o SOL. Mas o MP ainda não concluiu se houve crime ambiental.

“Continuamos à espera de um culpado”, diz Rosa Ribeiro, que esteve sete dias nos cuidados intermédios do Hospital de S. José, em Lisboa, devido à legionella, e depois outros 12 dias no Hospital de Vila Franca, onde lhe detectaram a síndrome de Guillain-Barre, que lhe atingiu o sistema nervoso.

Por isso, todas as queixas já apresentadas foram feitas contra desconhecidos. Nelas pede-se que sejam apuradas responsabilidades pelo surto, que se propagou pelo ar em Vila Franca, infectando 375 pessoas e matando 12. “Não temos culpa de termos respirado”, lamenta Rosa, que no início do ano, depois de dois meses em casa, voltou ao trabalho, num laboratório do Estado onde é informática: “Consigo mexer o 'rato' do computador e atendo os telefones do serviço”. Para o resto, conta com os colegas.

'Salva' pelo Facebook

Ainda hoje Maria Delfina Correia pensa duas vezes antes de abrir a torneira para encher um copo de água. “É inconsciente o medo da legionella que ainda sinto”, explica esta antiga secretária da PT, de 66 anos, recordando os primeiros alertas das autoridades de saúde que aconselhavam os habitantes da zona a consumir apenas água engarrafada e a evitar tomar banho de chuveiro porque as gotículas são a forma de transmissão da bactéria.

Delfina, que apresentou queixa-crime há duas semanas, também continua com medo de adormecer. A viver sozinha, esteve caída na cama, inconsciente, durante dois dias, no auge do surto, em Novembro. Foi uma sorte as amigas chegarem a tempo de a salvar: “Acharam estranho eu não aparecer no Facebook e quando me ligavam eu não atendia. Por isso, telefonaram à minha vizinha Guiomar, que tem a chave de casa, e foi ela quem me encontrou”.

Foi levada de imediato pelo INEM: primeiro para o Hospital de Vila Franca, onde, por falta de vaga, foi encaminhada para Lisboa, para o S. Francisco Xavier e dali para o Egas Moniz. Esteve 19 dias internada, sete ventilada nos cuidados intensivos, com pneumonia causada pela bactéria.

Além das crises de ansiedade e da surdez ligeira, é sobretudo o cansaço deixado pela doença que a impede de fazer a vida habitual. “Não tenho forças para nada”, explica. “Depois de fazer a cama, fico tão cansada que tenho de me deitar”.

Pedidos de indemnização à espera do inquérito

É também um enorme cansaço que Nuno Viveiros, de 43 anos, sente todos os dias. O comercial, a viver em Alverca, sempre foi activo e praticava artes marciais até ser internado nos cuidados intensivos de Vila Franca, com legionella, tendo entrado em insuficiência renal. “Hoje, percorro os 500 metros que me separam da estação de comboios e chego lá a escorrer água. Tenho de me sentar para recuperar”, conta.

Nuno já tem pronta a queixa-crime que vai apresentar no MP nos próximos dias. Tal como a maioria dos infectados e familiares das vítimas vai usar como base a minuta fornecida pela Ordem dos Advogados de Vila Franca de Xira, que deu aconselhamento jurídico aos atingidos através de um acordo com a autarquia.

Na queixa, manifestam já a intenção de pedir uma indemnização e de se constituírem como assistentes no processo se vier a ser apurado um responsável pelo surto. E caso o inquérito do MP não encontre culpados, vão processar o Estado. A ideia, sabe o SOL, é que neste pedido de indemnização os doentes avancem em conjunto, criando até uma associação que lhes dê maior força reivindicativa.

“Queremos Justiça”, defende Hélia Cristina, uma das queixosas. É nora do feirante António Almeida, que morreu nos cuidados intensivos do Hospital de Vila Franca em Novembro, apenas três dias depois de lhe ter sido diagnosticada a bactéria: “A perda do meu sogro é uma perda de revolta”.  António terá sido infectado quando vendia roupa de criança numa das duas freguesias mais atingidas (Forte da Casa e Póvoa de Santa Iria). “Ninguém merece morrer porque estava a trabalhar”, lamenta a nora. Neste momento, a família ainda não constituiu advogado, que só será necessário quando o processo avançar em tribunal. “Podemos pedir apoio à Segurança Social e ao Estado um advogado oficioso”, admite Hélia Cristina. O mesmo deverão fazer a maioria das vítimas, explica a Ordem dos Advogados.

joana.f.costa@sol.pt