As abelhinhas responsáveis pela harmonia dos lares portugueses têm, claro está, um ferrão aguçado que espetam no inimigo quando se sentem ameaçadas ou sob pressão, e dependendo da duração da sua acção em cada flor, as abelhinhas domésticas têm maior ou menor ascendente sobre a Rainha. Como são as abelhinhas domésticas que realizam todo o trabalho que a Rainha não pode executar, é muito comum que se invertam os papéis e que sejam as abelhinhas a assumir o comando da colmeia.
Na lógica doméstica, como numa colmeia, a colaboração de uma abelhinha que ajude a desempenhar as tarefas é por vezes essencial.
A entrada de uma nova espécie no ecossistema familiar é sempre algo a que temos de nos habituar de rompante, pois o delicado equilíbrio do qual já falei sofre inevitavelmente consequências mais ou menos nefastas; da jarra partida a uma nova ordem na decoração, há toda uma escala de níveis a assimilar.
Nunca tive ninguém para me ajudar com as limpezas da colmeia, até que, grávida de oito meses e com uma barriga enorme, dei por mim a lavar a banheira da seguinte forma: dentro da dita cuja, descalça, com o chuveiro numa mão e o detergente na outra e esponja por baixo do pé esquerdo, que se agitava em movimentos curtos e enérgicos, para trás e para a frente. Eventualmente terei percebido que das várias mudanças prestes a acontecer, uma delas passava por admitir que precisava de ajuda com a lida da colmeia.
Admito que tenho alguns complexos para com o facto de contar com essa ajuda, porque sempre achei que a lida da colmeia era um aglomerado de tarefas que, de forma orgânica, ia realizando de acordo com a minha disponibilidade. Eu própria já ganhei dinheiro a fazer limpezas. E por saber que esta profissão de abelhinha não é, de todo, um trabalho de sonho, posso dizer que limpo muitíssimo bem e que admiro profundamente quem o faz.
Este texto pode muito bem estar abrigado pelo hashtag #whitepeopleproblems.
Uma coisa que sempre ouvi, naqueles jantares entre casais amigos (dos meus pais), da boca de alguém do sexo feminino, são queixas sobre a empregada. Ora é por qualquer coisa que a Senhora partiu e que as empregadas estão sempre a partir coisas, ou é pelo que a empregada fez a determinada peça de roupa e que as empregadas estão sempre a estragar roupa, ou qualquer coisa do género. Nesses jantares, a conversa é rapidamente dividida entre gineceu e androceu, abolindo-se a ideia de colmeia até ao final do mesmo.
Condicionada pelo género, acabo sempre por ficar a ouvir a parte do gineceu, que remete para uma relação de dependência, amor, ódio e medo entre as rainhas e as abelhinhas. As rainhas não têm outro remédio senão aceitar as grandes conquistas territoriais das abelhinhas, que se impõem na ordem vigente de forma tão astuta que basta uma visita à nossa colmeia para nos tornarmos dependentes.
Mas porque é que, antes da visita da abelhinha, a rainha arruma a colmeia?
Achei-me há dias numa conversa sobre abelhinhas domésticas e colmeias, flores e pólens cruzados, com amigos que partilham a mesma abelhinha, mas têm qualidades de mel substancialmente diferentes e percebi porque é que as rainhas tanto temem as abelhinhas: porque no processo de polenização, entre o leva e traz para o mel ficar perfeito, há sempre uma quota parte de intimidade que as abelhinhas transportam consigo, de flor em flor, de favo em favo, de colmeia em colmeia.
A partilha da intimidade do lar, que não é mais que um conjunto de objectos funcionais que, quando aglomerados, permitem a agilização de uma série de vidas, é, para as abelhinhas, uma espécie de linguagem não-verbal que grita o que é cada um dos membros da família.
E na solidão da colmeia, os favos, a nu, são muito mais do que um conjunto de objectos funcionais: são o ponto de partida para a ficção de uma intimidade em que reconhecemos o cenário onde decorre a acção.
Essenciais, sim, as abelhinhas não são para temer, muito menos as suas ficções. As abelhinhas são para estimar e amar, porque não há nada mais rico ou revitalizante que uma boa colherada de mel.
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