Os opositores do AO prosseguem a sua batalha nos tribunais e acreditam que o processo ainda pode ser travado pelo Supremo Tribunal Administrativo, onde deu entrada uma acção no final do ano passado. Além de criticarem algumas regras, garantem que a implementação está a correr mal. Há quem ponha até em causa o fim do período de transição, atirando-o para Setembro de 2016, seis anos após a publicação em Diário da República da ratificação da decisão pela Assembleia da República. Nesse mesmo ano, o Conselho de Ministros aprovou uma resolução que impôs a adopção do acordo em toda a administração pública a partir de Janeiro de 2012.
Fim da dupla grafia nas escolas
Nas escolas, o acordo aplicou-se há três anos e a sua implicação nos exames nacionais tem decorrido de forma gradual, começando pelo 6.º ano de escolaridade, em 2014. Este ano, a regra terá consequências na vida de muitos milhares de estudantes, pois a dupla grafia não será permitida nas provas dos 4.º, 9.º, 11.º e 12.º anos.
Segundo explicou ao SOL o Instituto de Avaliação Educativa, cada erro ortográfico será penalizado com um ponto (em 200) e, no máximo, os alunos podem ser penalizados pelos seus erros ortográficos (nos quais se incluem os eventualmente decorrentes do uso da antiga grafia) em quatro valores (40 pontos).
Ana Mendes da Silva, professora de Português, diz que isto terá “impactos muito negativos nas notas dos exames e, consequentemente, na entrada dos alunos na faculdade”. A docente, que integra a direcção da recém-criada Associação Nacional de Professores de Português (Anproport), afirma que “há um caos ortográfico nas escolas porque os alunos não aprendem só com o que ouvem na sala de aula mas também, por exemplo, na televisão”. Ana Mendes da Silva diz que “não há um modelo instituído” e que “os próprios professores não têm a noção das regras do acordo, tendo em conta todas as suas facultatividades”.
A docente explica que, “na cabeça dos alunos, o acordo faz cair os 'c' e 'p'“. “E eu nem lhes consigo explicar que não é bem assim porque a regra não é clara”. Na prática, acrescenta, “multiplicam-se os erros: como as palavras 'fato' (em vez de facto) ou 'contato' (em vez de contacto)”.
No final de Abril, a Anproport pediu ao ministro da Educação que autorizasse a dupla grafia nos exames deste ano. “A definição deste calendário partiu do pressuposto de que o acordo estaria consolidado e isso não é verdade. Os alunos estão muito desorientados”, nota Ana Mendes da Silva.
Contactado pelo SOL, o gabinete de Nuno Crato afasta essa possibilidade e diz que “não tem conhecimento de constrangimentos decorrentes da aplicação do acordo ortográfico ao sistema educativo português ou da sua implementação nos manuais escolares em uso no mesmo”. Também a Associação de Professores de Português nega a existência de qualquer problema: segundo a presidente, Edviges Ferreira, “actualmente os alunos já são penalizados nos testes normais se não usarem o acordo”.
Universidades dividem-se
São muitas as faculdades de Lisboa que não têm uma posição assumida sobre se os professores e estudantes devem ou não usar o novo acordo em testes, trabalhos académicos e até teses de mestrado e doutoramento, pelo que ambas as formas de escrita são aceites. É o que acontece na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa (FCSH-UNL), em que não existe qualquer tipo de obrigatoriedade. “No próprio site oficial da faculdade pode-se ler textos redigidos na nova grafia e outros com a antiga porque ainda estamos num período de adaptação”, disse ao SOL Antónia Coutinho, professora desta faculdade, doutorada na área da linguística, explicando: “Eu não desconto mas chamo à atenção, sobretudo aos alunos que frequentam o mestrado de ensino porque mais tarde poderão ser colocados em escolas onde tenham de ensinar os alunos com o AO”.
A especialista em linguística lembra que as alterações não são assim tão significativas e considera até que as “resistências à aplicação do acordo estão a aumentar a instabilidade”. E acrescenta: “Não se mata a língua pela ortografia – e é interessante como algumas das formas estão mais próximas da ortografia de Eça de Queiroz, pelo que é uma ortografia convencional”.
Mas nem todas as instituições do ensino superior permitem ambas as grafias. Ao contrário das universidades de Lisboa e Coimbra, as do Porto, Minho, Algarve e Madeira impõem aos alunos o uso do AO. “Estas universidades têm ordens para descontar erros de ortografia nos testes, trabalhos e teses”, explicou ao SOL o constitucionalista Ivo Miguel Barroso, um dos principais opositores ao AO.
Tribunais reclamam soberania
Todas as polícias já adoptaram o acordo ortográfico. Na Polícia Judiciária, as comunicações oficiais seguem as novas regras, tal como estipula uma ordem de serviço assinada pelo director nacional em Janeiro de 2011. Desde essa altura, os correctores ortográficos instalados nos computadores da instituição foram adaptados de forma a permitir a conversão automática da escrita. “Muitos não concordam, mas não há alternativa”, disse ao SOL um inspector, acrescentando, porém, que ainda continua a escrever 'inspector' e não 'inspetor'.
Na PSP e na GNR, o processo foi idêntico. Em 2011, a GNR difundiu instruções a todo o efectivo para aplicar o acordo a partir de 2012: foram instaladas nos computadores aplicações para que a correcção dos documentos (electrónicos) fosse automaticamente feita de acordo com o acordo e foi distribuído um 'Guia para a Nova Ortografia'. Na PSP, os agentes tiveram inclusive acesso a cursos ministrados através da plataforma e-learning da instituição.
Nos tribunais, contudo, o cenário é diferente. A maioria dos juízes e procuradores continua a redigir acórdãos e despachos à moda antiga. Ao SOL, fonte oficial do Conselho Superior da Magistratura explicou: “A determinação vigente refere-se apenas aos serviços da administração pública, não aos tribunais enquanto órgãos de soberania”. E isso só mudará quando “for determinado legalmente”.
Em Abril de 2012, o CSM aprovou uma deliberação segundo a qual “não pode indicar aos juízes a forma em que as peças (processuais) deverão ser publicadas, sendo que as mesmas devem ser publicadas conforme forem elaboradas”. Exemplos não faltam. O presidente do Supremo Tribunal de Justiça, Henriques Gaspar, tem redigido todos os discursos de acordo com a grafia antiga – à semelhança de outros conselheiros, como Souto Moura, que analisou em Dezembro passado o terceiro habeas corpus visando a libertação de José Sócrates, e Santos Cabral, que decidiu em Março o último pedido desta natureza, apresentado pela defesa do ex-primeiro-ministro.
Já os juízes do Tribunal Constitucional e do Tribunal de Contas redigem os acórdãos segundo as novas regras.
No Ministério Público, as resistências à mudança também persistem. “A generalidade dos operadores judiciários escreve de acordo com as regras antigas”, atesta António Ventinhas, presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público, admitindo que ele próprio ainda não se converteu: “Não tenho posição sobre o assunto, mas não é fácil alterar a maneira de escrever de um dia para o outro”. Há, no entanto, vários departamentos que já se adaptaram, caso do Departamento Central de Investigação e Acção Penal, cujo director, Amadeu Guerra, elaborou recentemente o relatório de actividades de 2014 de acordo com os novos princípios. Ao SOL, fonte oficial da Procuradoria-Geral da República não esclareceu se Joana Marques Vidal já adoptou AO, dizendo apenas que não foi emitida qualquer orientação sobre o assunto. Mas o recém-lançado Portal do Ministério Público já segue a nova grafia.
De resto, todos os documentos oficiais do Governo, incluindo decretos e leis publicados em Diário da República, já estão de acordo com a nova grafia. O próprio Relatório Anual de Segurança Interna foi redigido segundo o AO. E no Parlamento todos os computadores foram adaptados para permitir a conversão automática.
Editoras adaptam clássicos e manuais
Os grupos Porto Editora e Leya começaram por publicar com o novo acordo ortográfico, aplicando-o principalmente nos manuais escolares, em 2011, data imposta pelo Ministério da Educação. De forma geral, a mesma atitude foi tomada noutro tipo de edições: grandes clássicos da literatura portuguesa – como as obras de Eça de Queirós ou de José Saramago, por exemplo -, literatura traduzida, autores brasileiros e de países africanos de língua oficial portuguesa, uma vez que o objectivo do acordo é unificar e padronizar a língua.
Mas as editoras abrem excepções quando um autor prefere publicar a sua obra na grafia antiga. No que diz respeito aos clássicos literários, a Editorial Presença refere que a publicação com a nova grafia depende da preferência do leitor e se são lidos num contexto escolar. “Em alguns casos, adoptámos o AO porque os livros são objecto de estudo nas escolas. Nos outros casos, tentámos manter o antigo acordo até porque a maior parte dos leitores que compra estas obras revela preferência e vontade de ler obras clássicas escritas segundo a grafia pré-acordo de forma a não desvirtuar a vontade final do autor”, disse Francisco Pinto Espadinha, administrador da Editorial Presença.
Jornais e televisões convertem-se
A esmagadora maioria dos media já escreve com a nova grafia. É o caso da agência noticiosa Lusa e dos grupos Global Media (JN, DN, Jogo e DN Madeira), Cofina (CM e Record) e Impresa (Visão, SIC e Expresso). Mas alguns dos seus cronistas – como Miguel Sousa Tavares, no Expresso, e João César das Neves, no DN – preferem continuar a escrever de acordo com a antiga grafia. Também a RTP e a TVI seguem este exemplo, assim como o diário online Observador.
São apenas seis os jornais de expansão nacional que continuam a escrever com a grafia antiga: SOL, i, Público, Jornal de Negócios, Sábado e Diário Económico.